A pergunta é: que natal?
Ana Vargas
A mulher de olhos claros mora em
Juiz de Fora e mostra um lugar que
parecia ser a cozinha de sua casa; ‘parecia’, porque agora está alagado. Uma
água avermelhada invadiu a casa dessa mulher, ‘ foi por causa das chuvas’, diz
ela, com o olhar mais desamparado entre os mais desamparados que já vi. A água
vermelha e suja encobriu metade do
armário da cozinha, as cadeiras, o fogão, a geladeira... E a mulher, lá no meio,
fica olhando com água até a canela; ela
olha como se quisesse que tudo aquilo fosse um pesadelo.
Pois é: esse pesadelo é muito
comum para pessoas que moram em lugares pobres, sobre os morros e encostas,
perto de rios caudalosos que foram canalizados (parece) de qualquer jeito, como
se aqueles que fizeram isso, achassem que assim o rio ficaria acomodado como um
bom menino. Mas penso que o ‘pesadelo’ acontece, acima de tudo, porque os que fizeram
isso, não se importam nem um pouco com a vida das pessoas que moram nos bairros
pobres e periféricos e distantes dos centros de qualquer lugar. Eu fico até imaginando como devem ser as reuniões
nas quais se decidem que projetos serão feitos e como serão feitos (materiais
que serão usados, cronogramas que devem ser cumpridos às pressas e etc.).
Lá
estão eles, os homens que não se importam, em salas envidraçadas, com ar
condicionado e talvez estejam pressionados para fazer ‘a obra’ porque ‘ano que
vem tem eleição ’. E, então, eles fazem
as tais obras, sim; mas de um jeito distanciado da vida de quem mora ‘lá’, nos
bairros periféricos.
Perdi a conta de quantas vezes vi
a mesma novela (ou melhor: filme de terror); eu me lembro de assistir
telejornais lá na infância (70 e poucos) e adolescência (80 e poucos) e ver com
muita pena, aquelas pessoas que sofriam sob enchentes em São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Salvador... E hoje eu já
passei dos 40 e isso ainda acontece aqui no país em que nasci.
E devo ‘dizer’: como eu sempre
tive e tenho pena dessas pessoas, não sei quem são elas porque nos telejornais
da vida o que interessa é enfiar a câmera quase nos olhos para ver se sai
alguma lágrima; ninguém (que eu me lembre) vai atrás do prefeito X ou do
engenheiro Y que esteve à frente ‘da obra’; ninguém faz isso. Ninguém quer
saber por que a obra que custou não sei quantos milhões em 1986 ou sei lá
quando, não cumpriu seu objetivo principal e a rua X continua alagando em
tempos de chuva e destruindo as casas das pessoas.
É claro e lógico que: essas obras
de retenção de encostas ou de canalização não vão (sozinhas) conseguir conter as tragédias que acontecem
anualmente Brasil afora, nessa época de chuvaradas. Tem muito mais sob os escombros que ficam
dessas casas pobres e das tantas vidas que se perdem ali, sob a lama e o
entulho. Tem a questão da moradia digna que ainda é cara para a maioria das
pessoas, tem a educação que falta e que se houvesse, levaria ao bom senso que
faria com que essas pessoas pensassem 10 vezes antes de construir suas casas
naqueles lugares.
Agora é tempo de ouvir bastante a
frase “mas também, olha onde o fulano construiu sua casa’” ali do lado do rio,
na favela X ou no bairro y ao lado de outras quinhentas casas daquelas que a
gente olha e pensa em como ficam de pé. (Como reparo nisso quando ando por São
Paulo e vejo as casas ao lado das marginais; um amontoado de casinhas que
parecem de papelão e mal se sustentam).
E eu lamento demais quando sei
que crianças morreram (e morrerão) nessas tragédias causadas não pela chuva e
sim, pela incompetência política, o desprezo pela vida das pessoas pobres, bem
entendido.
E é dezembro, quase natal, mas que natal essas pessoas
terão?
Sem demagogias ou pieguices (já
basta a feita pelos telejornais da vida), sem aquele ranço de revolta contra
políticos que não fazem o que deveriam
fazer, eu apenas queria que as pessoas que tem o poder de decidir coisas
importantes para a vida de outras pessoas, estivessem, por um segundo, na pele
daquela mulher ou daquele homem que perdeu tudo e sabe que nem tem a quem
recorrer e que precisa apenas seguir em frente.
Acho que o natal – esse aí,
bombardeado pela TV - é algo quase
vergonhoso, quando se sabe que tanta gente nesse país vai passar a semana que
vem tentando esquecer a tristeza de ter perdido tudo numa enchente (em alguns
casos, tudo, inclusive os filhos ou os pais).
Acho ainda que uma vida digna
numa casa segura e mais ou menos confortável, deveria ser direito de qualquer
pessoa (mas eu também sei que isso é quase utópico porque envolve escolhas
pessoais que, por sua vez, tem a ver com educação, amor próprio... O lado,
digamos, abstrato mas, essencial na vida de qualquer criatura humana).
Acreditem: fotografei esse arco-íris agora à tarde; queria uma imagem para colocar aqui, então.... Talvez não combine com o tema, mas combina com a velha esperança que resiste (apesar de tudo). |
Pra terminar: que os próximos
dezembros não sejam assim tão tristes para alguns de nós, é o que desejo. (E
que saudade de quando nos meus dezembros havia: cheiro de manga pelos ares;
notícia de que havia passado de ano, férias, reencontros, tardes de arco-íris,
sol e chuva juntos criando dias que a mim hoje, parece que foram sonhados e não
vividos).
Crônica
Morro
do Ferro: a cidade (das memórias) do meu pai
Porque
temos a tendência de olhar para baixo quando estamos no topo? Porque geralmente
fazemos isso quando subimos até o último andar de um prédio ou quando alcançamos
o topo de uma montanha? Será que olhamos lá para baixo para que confirmemos a
nós mesmos que sim: conseguimos? Sim: fomos capazes e por aí afora?
Será?
Pois
o meu pai que fez 92 anos em dezembro tem andado assim: ele fica quase sempre
olhando lá para trás ou para baixo - será que o passado seria isso? Algo ‘abaixo’
do presente? - para o passado mais distante, aquele que é quase invisível de
tão longínquo... E, então ele vai contando seus causos: de quando tinha sete
anos e gostava de ouvir a avó contando... causos (e a vida não é mesmo um ciclo
retorcido, deslumbrante e sempre surpreendente?), de quando o padre da cidade
em que nasceu fez com que uma árvore centenária se partisse ao meio porque
ficava em frente da igreja e ocultava o esplendor da dita cuja, de quando ele
caçava passarinhos pelos campos, despreocupado como a gente só consegue ser na
infância (quer dizer em tempos de politicamente correto, nem na infância).
E
assim ele vai desfiando nomes de pessoas que já partiram pra cidade dos ‘pés
juntos’ (como ele chama o cemitério) há muito tempo. Tanto tempo que ele, um
senhor quase centenário, era um menino vivendo nos confins das Gerais. E sim:
ele só se lembra de pessoas que se foram quando ele sequer tinha 20 anos de
idade e todos vivem nas memórias dele como se fossem os adultos admiráveis que
sua visão infantil construía.
Mas
do que ele mais se lembra é das paisagens da cidade em que nasceu, um
lugarzinho como centenas de outros que existem em Minas. Um distrito de nome
meio poético que se chama Morro do Ferro e fica na região sudoeste do estado.
Morro
do Ferro: desde criança tenho vontade de conhecer esse lugar de pouco mais de
mil moradores, tenho vontade de andar por suas ruas de casas simplórias, subir
ladeiras que quase sempre vão dar em igrejinhas pintadas de azul e branco ou
não (porque como você sabe, o que há em Minas são igrejas e montanhas e
montanhas e igrejas), me sentar nos bancos das pracinhas humildes que contornam
essas igrejas...
...e
conversar com o povo que passa por ali – o ‘seu’ Antônio ou a dona Francisca –
e saber da vida deles... Ter, enfim, aquelas conversas tão interioranas e
ingênuas que quase sempre são motivo de ironias para certo tipo de gente que
acha que Brasil é só Rio e São Paulo até hoje, em pleno século XXI.
Pois
eu penso que deveria descobrir Morro do Ferro a partir desses colóquios que
teria com as pessoas que moram lá. Quem sabe assim eu não saberia mais sobre
aqueles que já partiram, há muito, há tanto tempo que o meu pai era um menino de calças curtas e nunca, mas
nunca mesmo, poderia saber que a vida dele seria o que foi e é e está sendo.
Meu
pai agora está no alto dessa montanha e ele olha lá para baixo, e ele tenta
identificar na vegetação do passado antiquíssimo – que deve ser como aquela
massa verde clara ou verde escura que vemos da janela do avião – uma árvore
mais familiar; aquele rio que ele atravessou na companhia do João ou do José ou
do Antônio... Mas ele só enxerga nuances, imagens desfocadas e por isso (penso)
ele precisa falar do que passou e precisa contar o mesmo caso muitas vezes para
se certificar de que aquilo não foi invenção.
Sim:
é para dizer para si mesmo que aquela viagem, aquele dia naquela fazenda ao pé
da Serra dos Alemães, aquela pessoa que foi simpática ou foi rude ou indiferente
lá nos dias de sua infância... que tudo isso, enfim, realmente existiu e não é
só uma recordação apagada, vaga e sem vida.
Pois
é, eu tenho certeza que Morro do Ferro é um lugar diferente, especial e colorido
de um jeito suave como são as pinturas de paisagens do século 18 ou as telas do
Guignard. Eu sei que lá (como todos os lugares desse mundo) tem problemas*, mas
quero imaginá-la somente como um lugar bom de viver, habitada por gente amigável e sincera que anda pelas ruas,
que se cumprimenta e sorri.
É
assim que ela existe quando meu pai fala dela, então é assim que ela se mostrou
para mim e é desse modo que ela existe na minha imaginação.
·
Morro
do Ferro não é um sonho róseo, longe disso, com um nome desses, só poderia ser
uma região rica, claro, em ferro. Acontece que tiraram tanto ferro de suas
entranhas que seus campos agora estão cheios de crateras (chamadas voçorocas) e isso sim, é triste
até não mais poder. Se quiser saber mais veja aqui. http://www.dcs.ufla.br/morrodoferro/MPrincipal.htm
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Agora
para ver o lado ‘poético’ : andei colocando
fotos de lá nesse link (e outras de Minas), quem quiser ver: http://www.flickr.com/photos/geraesdeminas/ será
muito bem vindo!