domingo, 22 de dezembro de 2013

A pergunta é: que natal?

Ana Vargas

A mulher de olhos claros mora em Juiz de Fora   e mostra um lugar que parecia ser a cozinha de sua casa; ‘parecia’, porque agora está alagado. Uma água avermelhada invadiu a casa dessa mulher, ‘ foi por causa das chuvas’, diz ela, com o olhar mais desamparado entre os mais desamparados que já vi. A água vermelha e suja  encobriu metade do armário da cozinha, as cadeiras, o fogão, a geladeira... E a mulher, lá no meio, fica olhando com água até a canela; ela  olha como se quisesse que tudo aquilo fosse um pesadelo.

Pois é: esse pesadelo é muito comum para pessoas que moram em lugares pobres, sobre os morros e encostas, perto de rios caudalosos que foram canalizados (parece) de qualquer jeito, como se aqueles que fizeram isso, achassem que assim o rio ficaria acomodado como um bom menino.  Mas penso que o ‘pesadelo’  acontece, acima de tudo, porque os que fizeram isso, não se importam nem um pouco com a vida das pessoas que moram nos bairros pobres e periféricos e distantes dos centros de qualquer lugar. Eu  fico até imaginando como devem ser as reuniões nas quais se decidem que projetos serão feitos e como serão feitos (materiais que serão usados, cronogramas que devem ser cumpridos às pressas e etc.). 


Lá estão eles, os homens que não se importam, em salas envidraçadas, com ar condicionado e talvez estejam pressionados para fazer ‘a obra’ porque ‘ano que vem tem eleição ’. E, então,  eles fazem as tais obras, sim; mas de um jeito distanciado da vida de quem mora ‘lá’, nos bairros periféricos.


Perdi a conta de quantas vezes vi a mesma novela (ou melhor: filme de terror); eu me lembro de assistir telejornais lá na infância (70 e poucos) e adolescência (80 e poucos) e ver com muita pena, aquelas pessoas que sofriam sob enchentes em São Paulo,  Rio, Belo Horizonte, Salvador... E hoje eu já passei dos 40 e isso ainda acontece aqui no país em que nasci.


E devo ‘dizer’: como eu sempre tive e tenho pena dessas pessoas, não sei quem são elas porque nos telejornais da vida o que interessa é enfiar a câmera quase nos olhos para ver se sai alguma lágrima; ninguém (que eu me lembre) vai atrás do prefeito X ou do engenheiro Y que esteve à frente ‘da obra’; ninguém faz isso. Ninguém quer saber por que a obra que custou não sei quantos milhões em 1986 ou sei lá quando, não cumpriu seu objetivo principal e a rua X continua alagando em tempos de chuva e destruindo as casas das pessoas.


É claro e lógico que: essas obras de retenção de encostas ou de canalização não vão (sozinhas)  conseguir conter as tragédias que acontecem anualmente Brasil afora, nessa época de chuvaradas.  Tem muito mais sob os escombros que ficam dessas casas pobres e das tantas vidas que se perdem ali, sob a lama e o entulho. Tem a questão da moradia digna que ainda é cara para a maioria das pessoas, tem a educação que falta e que se houvesse, levaria ao bom senso que faria com que essas pessoas pensassem 10 vezes antes de construir suas casas naqueles lugares.


Agora é tempo de ouvir bastante a frase “mas também, olha onde o fulano construiu sua casa’” ali do lado do rio, na favela X ou no bairro y ao lado de outras quinhentas casas daquelas que a gente olha e pensa em como ficam de pé. (Como reparo nisso quando ando por São Paulo e vejo as casas ao lado das marginais; um amontoado de casinhas que parecem de papelão e mal se sustentam).

E eu lamento demais quando sei que crianças morreram (e morrerão) nessas tragédias causadas não pela chuva e sim, pela incompetência política, o desprezo pela vida das pessoas pobres, bem entendido.

E é  dezembro,  quase natal, mas que natal essas pessoas terão?

Sem demagogias ou pieguices (já basta a feita pelos telejornais da vida), sem aquele ranço de revolta contra políticos que não fazem  o que deveriam fazer, eu apenas queria que as pessoas que tem o poder de decidir coisas importantes para a vida de outras pessoas, estivessem, por um segundo, na pele daquela mulher ou daquele homem que perdeu tudo e sabe que nem tem a quem recorrer e que precisa apenas seguir em frente.
Acho que o natal – esse aí, bombardeado pela TV  - é algo quase vergonhoso, quando se sabe que tanta gente nesse país vai passar a semana que vem tentando esquecer a tristeza de ter perdido tudo numa enchente (em alguns casos, tudo, inclusive os filhos ou os pais).

Acho ainda que uma vida digna numa casa segura e mais ou menos confortável, deveria ser direito de qualquer pessoa (mas eu também sei que isso é quase utópico porque envolve escolhas pessoais que, por sua vez, tem a ver com educação, amor próprio... O lado, digamos, abstrato mas, essencial na vida de qualquer criatura humana).





Acreditem: fotografei esse arco-íris agora à tarde; queria uma imagem para colocar aqui, então.... Talvez não combine com o tema, mas combina com a velha esperança que resiste (apesar de tudo).



Pra terminar: que os próximos dezembros não sejam assim tão tristes para alguns de nós, é o que desejo. (E que saudade de quando nos meus dezembros havia: cheiro de manga pelos ares; notícia de que havia passado de ano, férias, reencontros, tardes de arco-íris, sol e chuva juntos criando dias que a mim hoje, parece que foram sonhados e não vividos).


Crônica

Morro do Ferro: a cidade (das memórias) do meu pai






Porque temos a tendência de olhar para baixo quando estamos no topo? Porque geralmente fazemos isso quando subimos até o último andar de um prédio ou quando alcançamos o topo de uma montanha? Será que olhamos lá para baixo para que confirmemos a nós mesmos que sim: conseguimos? Sim: fomos capazes e por aí afora?
Será?

Pois o meu pai que fez 92 anos em dezembro tem andado assim: ele fica quase sempre olhando lá para trás ou para baixo - será que o passado seria isso? Algo ‘abaixo’ do presente? - para o passado mais distante, aquele que é quase invisível de tão longínquo... E, então ele vai contando seus causos: de quando tinha sete anos e gostava de ouvir a avó contando... causos (e a vida não é mesmo um ciclo retorcido, deslumbrante e sempre surpreendente?), de quando o padre da cidade em que nasceu fez com que uma árvore centenária se partisse ao meio porque ficava em frente da igreja e ocultava o esplendor da dita cuja, de quando ele caçava passarinhos pelos campos, despreocupado como a gente só consegue ser na infância (quer dizer em tempos de politicamente correto, nem na infância).

E assim ele vai desfiando nomes de pessoas que já partiram pra cidade dos ‘pés juntos’ (como ele chama o cemitério) há muito tempo. Tanto tempo que ele, um senhor quase centenário, era um menino vivendo nos confins das Gerais. E sim: ele só se lembra de pessoas que se foram quando ele sequer tinha 20 anos de idade e todos vivem nas memórias dele como se fossem os adultos admiráveis que sua visão infantil construía.
Mas do que ele mais se lembra é das paisagens da cidade em que nasceu, um lugarzinho como centenas de outros que existem em Minas. Um distrito de nome meio poético que se chama Morro do Ferro e fica na região sudoeste do estado.

Morro do Ferro: desde criança tenho vontade de conhecer esse lugar de pouco mais de mil moradores, tenho vontade de andar por suas ruas de casas simplórias, subir ladeiras que quase sempre vão dar em igrejinhas pintadas de azul e branco ou não (porque como você sabe, o que há em Minas são igrejas e montanhas e montanhas e igrejas), me sentar nos bancos das pracinhas humildes que contornam essas igrejas...

...e conversar com o povo que passa por ali – o ‘seu’ Antônio ou a dona Francisca – e saber da vida deles... Ter, enfim, aquelas conversas tão interioranas e ingênuas que quase sempre são motivo de ironias para certo tipo de gente que acha que Brasil é só Rio e São Paulo até hoje, em pleno século XXI.

Pois eu penso que deveria descobrir Morro do Ferro a partir desses colóquios que teria com as pessoas que moram lá. Quem sabe assim eu não saberia mais sobre aqueles que já partiram, há muito, há tanto tempo que o meu pai era um menino de calças curtas e nunca, mas nunca mesmo, poderia saber que a vida dele seria o que foi e é e está sendo.

Meu pai agora está no alto dessa montanha e ele olha lá para baixo, e ele tenta identificar na vegetação do passado antiquíssimo – que deve ser como aquela massa verde clara ou verde escura que vemos da janela do avião – uma árvore mais familiar; aquele rio que ele atravessou na companhia do João ou do José ou do Antônio... Mas ele só enxerga nuances, imagens desfocadas e por isso (penso) ele precisa falar do que passou e precisa contar o mesmo caso muitas vezes para se certificar de que aquilo não foi invenção.

Sim: é para dizer para si mesmo que aquela viagem, aquele dia naquela fazenda ao pé da Serra dos Alemães, aquela pessoa que foi simpática ou foi rude ou indiferente lá nos dias de sua infância... que tudo isso, enfim, realmente existiu e não é só uma recordação apagada, vaga e sem vida.

Pois é, eu tenho certeza que Morro do Ferro é um lugar diferente, especial e colorido de um jeito suave como são as pinturas de paisagens do século 18 ou as telas do Guignard. Eu sei que lá (como todos os lugares desse mundo) tem problemas*, mas quero imaginá-la somente como um lugar bom de viver, habitada por  gente amigável e sincera que anda pelas ruas, que se cumprimenta e sorri.

É assim que ela existe quando meu pai fala dela, então é assim que ela se mostrou para mim e é desse modo que ela existe na minha imaginação.



·        Morro do Ferro não é um sonho róseo, longe disso, com um nome desses, só poderia ser uma região rica, claro, em ferro. Acontece que tiraram tanto ferro de suas entranhas que seus campos agora estão cheios de crateras (chamadas voçorocas) e isso sim, é triste até não mais poder. Se quiser saber mais veja aqui. http://www.dcs.ufla.br/morrodoferro/MPrincipal.htm

·        Agora para ver o lado ‘poético’ : andei colocando  fotos de lá nesse link (e outras de Minas), quem quiser ver: http://www.flickr.com/photos/geraesdeminas/ será muito bem vindo!


sábado, 7 de dezembro de 2013

Oh, Minas Gerais!

Ana Vargas



Oh! Minas Gerais

Oh! Minas Gerais

Quem te conhece (superficialmente)  pensa que és feita apenas  de montanhas, clubes da esquina, JK, Beagá, pão de queijo, Tiradentes, Inhotim...


Quem te conhece pelas matérias de seus jornalões ou pelas propagandas políticas, nem sequer  imagina a podridão que existe  nas entranhas de suas cidadezinhas dominadas (até hoje) pelo coronelismo mais fajuto (mas justamente por isso, eficiente) e por um certo tipo de gente que ainda olha as coisas de Minas de cima para baixo...

Que ainda faz política parecida com aquela feita lá no Maranhão (diga-me de quem és filho e lhe direi se podeis desviar verbas públicas  ou não).
Oh, Minas Gerais, quem te conhece desse modo, não saberá jamais (jamais!) a verdadeira história que existe por trás de seus projetos políticos feitos de artimanhas e corrupções variadas; os conchavos que são tramados até entre aqueles que deveriam ser ‘os olhos do povo’ (um dia esse foi o papel da imprensa) e aqueles que se intitulam ‘donos’ desse povo.


Oh! Minas Gerais: como é revoltante saber que em suas cidades pequenas o crack avança veloz e os governantes desses lugares simplesmente, não se importam, não fazem absolutamente nada pelos jovens que vão se encaminhando para o terror das drogas; e aqueles  poucos, que gostariam de fazer, não contam com apoio nenhum e são obrigados a engavetar (mais uma vez) projetos sociais que beneficiariam milhares de famílias;

Oh, Minas Gerais, como é terrível saber que nesse momento, verbas estão sendo desviadas, ministérios que investigam e encontram algo, são obrigados a arquivar tudo em nome de uma suposta paz e calmaria que deve prevalecer nas imagens turísticas do estado.   

Oh, Minas Gerais, dizem que tuas terras são altaneiras, mas, ninguém diz que foram e ainda são vendidas nesses folhetos turísticos apenas para provocar aquele ultrapassado sentimento de bairrismo inútil, aquela sensação de que esse lugar ainda é ou deveria ser aquele dos tempos longínquos da liberdade ainda que tardia. Que liberdade? Ela ainda tarda... (assim como a justiça).

O seu céu é do puro anil e tão puro é que encobre com eficiência a imagem aviltante de sua política asquerosa, uns poucos, bem poucos, devem estar de fato, fazendo algo que valha a pena... Mas desses não se fala, é claro.



És bonita, oh terra mineira, quando estampada em páginas de revistas ou jornais da chamada ‘grande imprensa’- aquelas montanhas azuis ao fundo, o rosto de um caipira até hoje sendo ‘vendido’ como o de um mineiro típico (e aquelas tenebrosas piadas sem graça que circulam na internet), aquele olhar conformado e feliz; como se ser mineiro fosse ser acima de tudo resignado e manso.



Esperança do nosso Brasil: que fardo pesado te deram, oh Minas Gerais! Ser a esperança de um país que somente a pouco encontrou um rumo; ter que carregar o fardo de Tiradentes e de tudo aquilo que dizem, foi a inconfidência mineira.

Se foi: que bom! Como – aí sim – me orgulho apenas o suficiente, bem pouco, de forma vergonhosa até; pois ainda assim, como me orgulho por saber que no passado houve gente de Minas que se revoltou e deu a vida em troca de valores como dignidade e respeito e apreço por aqueles que de fato, precisam ser lembrados: o povo mineiro.
Se não foi, se tudo isso não passa de um mito histórico como tantos que existem por aí; Minas vive de glórias vazias e eu diria mesmo, ridículas! Pobre Tiradentes: se ele existiu, se foi de fato um herói, como deve estar se revirando no túmulo por ver no que se transformou o seu ‘sonho’ de liberdade.
Aquele seu remoto sonho é agora privilégio apenas de tipos raros que podem se dar ao luxo de roubar porque possuem este ou aquele sobrenome; daqueles que por serem amigos de fulano ou sicrano, podem até transportar drogas que nada, nada lhes acontece (acontecerá?).
E nem ela, a dita ‘imprensa’ está interessada em falar disso... Para quê afinal gastar palavras, tempo e ideias para falar, ora! É bem melhor acreditar em coisas como déficit zerado, capacidade política de uns e outros que sobrevivem à custa de seus sobrenomes (e apenas por isso); acreditar em coisas como modernidades, poderio político e toda essa palhaçada que ainda (ainda!) engorda verbas publicitárias deste ou daquele jornaleco, daquela rede de tevê, daquele fulano que é dono de uma fazenda de 60 milhões  e. bom, o resto você já sabe*.
Oh, Minas Gerais: ainda acreditam que  tua lua é a mais prateada – embora ela esteja refletindo sobre rios e vales depredados por mineradoras - que ilumina o nosso torrão – e torrão é a palavra certa para alguns cantos de sua paisagem tão enfiados em seus sertões que caixas eletrônicos são explodidos diariamente e a polícia nunca consegue  prender quem quer que seja... (Mas aqueles caras ali, que explodem caixas eletrônicos no sul ou no centro-oeste de Minas, de vez em quando vão pra cadeia, enquanto que aqueles caras lá, digo, aqueles que transportam droga em helicópteros de políticos que são amigos de pessoas de sobrenomes mistificados...Aqueles lá nunca vão pra trás das grades...Porque será?!)


És formosa, oh terra encantada,  mas sua formosura ainda resistindo bravamente em suas tardes entre as serras do cipó, da piedade ou da moeda; vai velozmente sendo vilipendiada por empreendedores desses que loteiam zonas urbanas e destroem o passado e a natureza; desses que cavoucaram a terra atrás da serra do curral e continuam cavando, talvez para chegar ao fundo de seu útero e para retirar de lá – quem sabe?- o resto de sua alma, tudo aquilo que afinal, fez com que fostes o que és.



És orgulho da nossa nação... Será?

Sim, ainda és orgulho se pudermos nos orgulhar das altas taxas de uso do crack nas cidades do interior, na capital, no triângulo...
És orgulho, se olharmos as propagandas do governo mineiro e acreditarmos naquele festival de mentiras publicitárias  sobre como os índices da economia, da educação e da saúde são invejáveis em Minas...
És orgulho para quem viu aquela moça que canta naquela banda (ruim) e que emprestou a sua figura tão modernosa para ser porta voz dessas mentiras; os adeptos da arte desengajada, da arte pela arte, da arte alienada certamente aplaudiram e ficaram orgulhosos!
Oh! Minas Gerais

Oh! Minas Gerais
Quem te conhece
Não esquece jamais




Quem te conhece e ama de verdade, quem sabe olhar para suas ruas antigas e seus becos e vielas e enxerga o povo que está ali, subindo estas ruas, cansado e espremido em transportes públicos lotados, tentando encontrar um lugarzinho ao sol em meio à avalanche de vagas compradas em concursos públicos, se virando como pode para pagar as contas com salário de professor, enfrentando filas e descaso nos postos de saúde e nos hospitais da capital e do interior...
Quem olha pra’s Minas Gerais e vê de fato a gente dessa Minas Gerais sabe muito bem que não há mais motivo nenhum para se orgulhar do que quer seja em Minas Gerais!


Mandela – Na lembrança por quanto tempo?


                                         Paulo R. Santos*



Viveu muito e viveu bem. Uma existência de 1918 a 2013 é suficiente para deixar todos os bons exemplos possíveis e, certamente, alguns erros também fazem parte da trajetória desse grande homem. Isso faz dele mais próximo e dificulta a 'santificação' indevida. O que importa é que Nelson Mandela fez e fez bem feito em sua conjuntura, em seu contexto de vida, em suas possibilidades.

Homens assim estão se tornando raros. O número de celebridades aumenta enormemente já que rendem um bom dinheiro e podem ser substituídas facilmente, mas heróis não são produzidos em escala fordista. O pensador estadunidense do século XIX, Ralfph Emerson, certamente o colocaria entre seus “Homens Representativos”.

Pena que superados os primeiros momentos de comoção coletiva, com algum tempo o esquecimento chegará sem sombra de dúvida. Vivemos tempos de mercantilização, de comercialismo desenfreado, e tudo que não rende algum tende a cair rapidamente no esquecimento. 

Claro! Ele será respeitado sempre que lembrado, mas não estará sempre na pauta das referências.



Para ler na íntegra acesse:  http://www.animalsapiens.blogs.sapo.pt/




quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Ensaio esquisito sobre uma cidade, o passado e o presente, a maldade, o descaso político, entre outras coisas...


O mundo não está ameaçado pelas pessoas más, e sim por aquelas que permitem a maldade.

O presente

Hoje é fácil ver as coisas com alguma clareza: nós crescemos, estudamos um pouco,  migramos para as cidades grandes, olhamos  fotografias antigas e achamos tudo distante e quase irreal. Hoje  somos todos adultos e espera-se que sejamos lúcidos o suficiente para entender o porquê das coisas, principalmente, daquelas aparentemente incompreensíveis.

Como a maldade, por exemplo.

E isso virou tema pois, como vocês sabem, com a facilidade de se obter informações sabemos de tudo instantaneamente. E eu soube ainda com mais verdade, digamos assim, que a presença nefasta do mal é, agora, realidade cotidiana lá na cidade em que nasci. Um rincão perdido no quase sertão de Minas.

Ora, você dirá: “mas até hoje você achava que havia algum lugar livre das ruindades humanas neste mundo? Quanta alienação”! Sim, e talvez você esteja certo.

Sempre fui dada a fantasiar ou a achar que as coisas do mundo (certas coisas) não deveriam, não poderiam ser como são; que havia algo errado e,se havia, era preciso consertar...

Uma cidade mineira como tantas outras.

Ontem



 E era assim a vida naquela cidade perdida do centro-oeste mineiro em que nasci, num  tempo empoeirado e singelo até a beira da ingenuidade.  Ali havia toda a matéria prima que certo tipo de povo preconceituoso, de cidade grande, ainda gosta de ridicularizar:  o sotaque arrastado, a vagareza em assimilar certos hábitos urbanos, a dificuldade em entender (naquele tempo - anos 1970) os modismos vindos lá de longe, das cidades maiores ( bastava que tais  cidades tivessem  semáforos e shoppings para que fossem consideradas ‘grandes’ ).
...o Benjamim Guimarães...













Naqueles idos tempos da minha infância, Dores do Indaiá (essa a minha cidade) conseguia se manter sob  uma redoma quase, e tudo – a vida rotineira que tínhamos entre a escola, os piqueniques ou pescarias, as andanças pelos quintais de uns e outros, as conversas dos adultos e as nossas ali pelos passeios, alpendres e praças;  a época das chuvas, dos natais, das festas juninas e das férias escolares; aquela professora mais doce ou mais brava, aquele colega mais certinho ou mais 'encapetado', as festas religiosas ou do tipo, digamos, pagão – parecia existir longe da influência terrível do mal.

Quantas vezes, na infância, ouvi histórias assustadoras sobre assassinatos ou mortes ali em Dores? Nenhuma. E olha que tenho boa memória (é o que dizem aqui em casa) e costumo me lembrar (e também sonho muito e aí, preciso escrever) de detalhes como a roupa que fulano usou naquele dia da festa do Rosário de 1982; do nome da minha colega da quinta série que morava perto da rodoviária ou das palavras que a professora mais querida pronunciou em certa tarde de 1981.



...lá no fundo, a Matriz de Nossa Senhora das Dores


Eu me lembro - para o bem ou para o mal, eu me lembro.

O tempo


Escola Francisco Campos


Acontece que o tempo passou e nos envelheceu a todos e eu custo a acreditar que A., que se sentava na primeira carteira da sétima série do Benjamim Guimarães e era tão inteligente e belo,  é difícil aceitar que ele  tem mais de 40 anos hoje, como eu,  e deve ser um adulto com  todas as neuroses contemporâneas sedimentas na alma... 

(Será que seus olhos azuis também envelheceram?)

Assim como é difícil acreditar que aquela minha cidade, naquele tempo começando a pavimentar a decadência que se acentuaria nas décadas seguintes, faria isso com grande louvor.

Pois, Dores do Indaiá é hoje o retrato do declínio que deve afetar grande parte das cidadezinhas mineiras. Os que ficaram adoram falar dos tempos idos, de quando a cidade poderia ser isso ou aquilo; os que partiram ou ficaram se encontram para postar fotos do passado ou do presente nas redes sociais e assim todos vivem (parece)  para além da realidade local que é triste e preocupante...
E é aqui que o mal finalmente entra nessa história toda.



Igreja de Nossa Senhora do  Rosário













Os fatos


Escrever sobre isso me ocorreu porque lá em Dores, há poucos dias, um casal foi assassinado de forma violenta e o burburinho nas redes sociais foi grande. Falou-se até em linchamento público e pessoas de diferentes idades  defenderam veementemente isso e aquilo. Foi em Dores também que uma força tarefa da polícia militar apreendeu há uns dois meses, drogas e traficantes e outras pessoas ligadas a (entre outras coisas) prostituição de menores. Todas pobres, todas muito jovens e eu diria mesmo, muito ‘ousadas’ para o padrão interiorano no qual cresci. 

Há muito a singeleza é coisa fora de moda  também nos interiores...



É ali em Dores também que a polícia tem realizado, com certa regularidade, o vão exercício de prender e soltar usuários de crack menores de idade. Há pontos de tráfico bem movimentados (dizem que são três ou mais, isso numa cidade de menos de treze mil habitantes), e é bem comum ouvir que o ‘filho da dona fulana’ é viciado em crack . Ampliando o tema ‘degradação’ para a política (essa área fértil nesse quesito), na gestão anterior foram comuns casos de corrupção e desvio de dinheiro público, agora, na atual ocorreu  o mesmo (mas o atual prefeito, aparentemente, não sabia e os envolvidos foram exonerados).

Ou seja, o ‘buraco’, como sabemos, é sempre “beeeem” mais embaixo...

O fundo do buraco





Diante de tanta decadência – moral, econômica, política e etc. – eu fui me lembrando do quanto sempre tive em doses iguais, amor e ódio por Dores do Indaiá. De como odiava a tal ‘elite’ (quase sempre falida), os tais fazendeiros que, no final das contas, estavam apenas tentando manter as aparências e pagaram muito caro por isso. 

Todas as vezes que vejo filmes nos quais há coronéis ou situações nas quais há a tal ‘luta de classes’  eu me lembro das tantas situações de exploração ou humilhação que presenciei na escola, no mercado ou na igreja entre pessoas dessa suposta elite e as gentes do povo (e eu sei o quanto isso pode parecer outro sinal de ingenuidade de minha parte e o quanto isso parece fora de moda nesse tempo de  black blocs!).


Mas, quem poderia imaginar que até eles – os coronéis dorenses, os endeusados fazendeiros – seriam nas décadas seguintes, apenas isso: provas de que aquele modelo social estava fadado ao fracasso, a confirmação de que lá na década de 1970, se não houvesse tanta roubalheira, se existisse alguma preocupação social, ‘se’ e ‘se’, Dores não seria a cidade decadente em todos os sentidos, na qual se transformou.


Hoje, nesse começo de século XXI, muita gente está preocupada com todas essas questões: violência, insegurança pública, drogas, degradação moral – ali, nas Dores do Indaiá.  Estamos cansados de ler sobre isso em relação às grandes cidades, certo? Mas quando tudo isso acontece numa cidadezinha que tem uma avenida e cinco praças, e na qual os velórios são anunciados em um carro de som pelas ruas, a dimensão é surreal...
...Dores sempre me pareceu um lugar como a ‘Macondo’ do García Marquez, tão bizarro me pareceu e parece tantas vezes...



O futuro: meninos na minha antiga rua.


Realismo mágico? Não: é a realidade mesmo...




Não parece um sonho, essa visão das Dores?

A pergunta base é: como uma gente tipicamente mineira e simplória que gosta de se sentar em praças para conversar ou para ver o velório do fulano passar ou simplesmente para bisbilhotar a vida alheia, convive com notícias como: explodiram o caixa do Banco do Brasil nessa madrugada; entraram na casa do seu A. e roubaram tudo; os filhos da dona M., um deles com menos de 15 anos, estão usando crack ? Pois, agora é preciso encontrar um jeito de enfrentar essas coisas de cidade grande: assassinaram esse casal e os caixões tiveram que ser lacrados (todos esses fatos das linhas acima são verídicos). 

Tudo isso é muito para Dores do Indaiá, seria muito para qualquer cidade com menos de 30.000 pessoas, é algo que não deve ser aceito com naturalidade em hipótese alguma.

Sempre me senti limitada lá naquela cidade com nome originado na boa fé católica, semelhante a outras centenas das Gerais; eu olhava pra’s montanhas além da Igrejinha do Rosário e ficava pensando que deveria existir algo mais além dali. 

Ao mesmo tempo eu sinto saudade de várias coisas que pude viver ali - da infância à adolescência-, e fico triste demais da conta por ver a falta de sensibilidade local para com a gravidade dos tantos problemas que têm desabado sobre Dores do Indaiá (a terra do poeta Emílio Moura*, do escritor Rubens Fiúza**, esse um polêmico que falou verdades amargas sobre a cidade, mas era apaixonado por ela).

 A citação do começo atribuída ao Einstein é perfeita para descrever no que se transformou Dores do Indaiá: o longo descaso político favoreceu a ocorrência de tudo isso que agora está florescendo com vigor e a cidade que já foi (jocosamente) chamada ‘princesinha do oeste’, a cidade que se parece cenário daquelas tramas globais em cidades fictícias do interior do país (só o centro é bem cuidado) finalmente acordou e o que a realidade exibe está sendo bem difícil de aceitar, por isso escrevi sobre isso hoje.

Esperança

E, 'isso'  que é algo que não se conclui, porque o ‘mal’  impera ali, nas Dores do Indaiá, e eu espero que essa fase seja passageira... Estão vendo? Acho que bem lá no fundo eu sempre gostei de Dores senão não teria perdido tempo escrevendo essa enormidade de texto (algo que vai contra todas as regras jornalísticas e virtuais).

Para se inteirar do mal:

Para que o bem prevaleça:


* Misticismo

O céu lindo da vila pobre!
E a igreja pequenina, que se espicha toda na torre,
Com vontade de ver o céu.
E o céu tão alto, e o céu tão alto! (Emílio Moura)



http://pt.wikipedia.org/wiki/Em%C3%ADlio_Moura







E como  o assunto das biografias continua rendendo, vale muito a pena ler o lúcido artigo que o amigo Paulo Santos * escreveu; textos como esse fazem falta na dita 'grande imprensa': 



                                        ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO

                                                                                                      Paulo R. Santos*

Ainda refletindo sobre as biografias autorizadas ou não, temos que considerar que a perda de perspectiva sobre os espaços público e privado como antagônicos, embora complementares, tem trazido mais que confusão. Olhar pelo buraco da fechadura virou moda. Fofocar, expor a própria intimidade, demonstram que tanto códigos de honra quanto a ética ficaram para trás, ou fora de moda.

Entendo que biografia só mesmo de quem já partiu para o andar de cima e mereça ser lembrado por uma razão ou outra. E que o pesquisador seja sério o suficiente para pensar primeiro, no registro da história pública da vida do biografado e somente depois, na vida privada (ainda que não haja problemas em mencioná-la). A questão financeira seria o fator menos importante.
Hoje se produzem biografias de gente que está por aí firme e forte e, claro, os interesses por trás disso são abertamente promocionais e financeiros.

Hannah Arendt comenta apropriadamente em uma de suas obras que a formação judaico-cristã predominante no Ocidente também tem papel importante nesse estado de coisas.


Hannah Arendt
Imagem: Wikipedia Commons

Pois, se Deus é o Pai (e o pai de todos), e o pai é – segundo a tradição grega clássica – o 'despotes', aquele que tem total poder sobre o espaço privado, ele acaba se tornando despótico ao longo dos séculos, isto é, extrapola o espaço que lhe cabe: o privado, e invade o público. Isso explica, por exemplo, o fato de que nossos políticos e poderosos, em geral, agem como se não houvesse 'res publica', apesar do discurso, e tudo lhes é permitido, tudo lhes pertence enquanto estão no poder.

Mudar essa mentalidade não é tarefa fácil, já que passa pela formação familiar e também pela educação formal. Não há mais preocupação com a questão nem num âmbito nem no outro. Passou a se considerar normal espiar pelas frestas e buracos o que for possível da vida alheia, escrevendo sobre ela, inclusive, mesmo que contra a vontade do biografado.

Aqueles que pedem respeito pelas suas vidas privadas - até porque ainda estão bem vivos e podem ter biografias parciais apenas -, e não mais que isso, devidamente conversadas com o pesquisador, são chamados de adeptos da censura como se a vida que viveram, as experiências boas ou trágicas que sofreram não lhes pertencesse.

Outro dia vi pela TV um pesquisador dizer que tais pessoas são por si, públicas, não se pertencem mais … Deduz-se que o deus mercado apropriou-se de todos nós, pequenos e grandes mortais. Não me convenceu!

* Paulo Santos é sociólogo e escritor; edita o blog Animal Sapiens 

                                   

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Biografia? Só se for não autorizada!

Ana Vargas

Tem tanta gente escrevendo sobre a polêmica das tais biografias que eu pensei muito antes de também escrever sobre. 

O assunto cresceu tanto que, pelo menos lá no Observatório da Imprensa, tem rendido artigos semanais de autores de áreas variadas. Todos querem opinar, todos odeiam ou amam o povo do grupo ‘procure saber’, todos amam e odeiam os biógrafos, enfim, esse assunto ainda vai render muito.


Diante de tanto conflito,  de réplicas e tréplicas, de tantas argumentações baseadas na lei, no sagrado direito à privacidade e em tudo mais que envolve o mundo da fama – porque no final é disso que se trata – temos assistido cenas que bem poderiam resultar num belo filme ou num documentário sobre essa nossa (louca) época.


E, sendo louca, eu infelizmente (como eu gostaria de ter uma ‘opinião formada sobre tudo’ ao contrário do que prega aquele cantor famoso) não sei o que pensar, não tenho nada pronto, nem engatilhado nada...nada...

Primeiro, como pessoa que sabe o trabalho que dá pra fazer um livro, fiquei inclinada a me posicionar do lado dos biógrafos. Fiquei realmente tocada pela história do cara que trabalhou 15 anos (!!) no livro de certa figura, na minha opinião, endeusada demais da conta da nossa decadente MPB; e viu todo o seu trabalho impedido de cumprir o destino que lhe cabia: ir pra’s livrarias, ser vendido, ser analisado, ser finalmente, lido! Já pensaram? Que frustração imensa a dele?!

Depois, fiquei pensando no outro lado, o dos biografados... 

E me pus a imaginar a trabalheira que é tentar reconstruir a vida de alguém por meio de documentos, entrevistas com pessoas que gostavam ou não gostavam do fulano e por aí afora. Esse enxerimento na vida alheia dá o que pensar. E, afinal, quanto de verdade há (haveria) no que os outros falam para os biógrafos?  Sim, pois se a conversa é  com pessoas simpáticas a ele, quantas amabilidades (palavrinha que teima em rimar com falsidades...) não serão ditas?




E, por outro lado: se a conversa é com  a turma dos antipáticos ao fulano, quantas meias verdades não poderão ser ditas com o intuito claro de denegrir a imagem da criatura?


E lá nos arquivos e fotografias e memoriais de família quanto poderia existir de realmente verdadeiro? É claro que dependendo de certas questões que se queira analisar, tudo poderia ser facilmente comprovado ali naquela certidão, naquele contrato... Mas eu fico pensando é no que escapa, no que esta além dali do que se escreveu, se certificou, se fotocopiou e ficou registrado para a posteridade.


Mas... e se a conversa fosse com o próprio fulano? E se, em certo momento, biógrafo e biografado se vissem diante daquela história desconfortável que aconteceu, por exemplo, em 1976 e  se fulano quisesse parecer menos vil do que foi, ou menos mesquinho e mais bonzinho...?


Quebra-cabeças








Pois é: a vida de qualquer pessoa – seja famoso ou anônimo - é um intrincado quebra-cabeças (perdoem o clichê) e eu ouso dizer que é impossível a qualquer um que se disponha -  seja ele de que área for, tenha ele a disposição que tiver -  compor com fidelidade  a trajetória do fulano desde o nascimento até os tempos nos quais a figura se tornou famosa e começou a adquirir aquela aura luminosa que transforma  pessoas até então, comuns, em seres especiais.


Tudo isso se conquista com muito trabalho e bem sabemos nós, os comuns mortais, que o que aparece depois é somente a cereja do bolo, a ponta do iceberg e que nos bastidores, sob as dezenas de camadas de laquê ou de botox ou de photoshop há simplesmente um ser humano que pode sim, ter sido vil, mesquinho; pode mancar ou ter sido mau aluno na sexta série, pode ter mais rugas do que aparenta e por aí afora...

Mas isso ninguém – é claro – quer mostrar.

E é aqui que entra o sagrado direito à privacidade, certo?

Pés de barro



Eu não sei quanto a vocês, mas eu nunca gostei de ler as tais biografias autorizadas; se é autorizada é porque o biografado contou sua versão (que pode ser qualquer coisa, verdadeira ou não), indicou e vetou entrevistados, escolheu fotografias nas quais ele aparece bem e por aí afora. Estas são as biografias chapas branca e nelas os fulanos famosos sempre vão aparecer envolvidos por uma aura de heroísmo, perspicácia, bondade e etc. 

Ali eles nunca serão grosseiros, antipáticos, caloteiros, maus maridos ou péssimos filhos: então, que graça tem isso?!


Pois se a vida de todos nós tem tantas situações variadas – boas, ruins, alegres, tristes, péssimas- e nós, humanos, nos comportamos tantas vezes da forma não esperada porque odiamos fulano que puxou nosso tapete ou porque não conseguimos pagar aquele empréstimo em dia ou não pudemos chegar no horário nem conseguimos disfarçar a antipatia por essa ou aquela pessoa... 




Não é tudo isso, afinal que enriquece a vida (bom, é preciso enxergar assim, segundo a autoajuda rs). Não seriam as nuances de comportamento que tornariam as pessoas, de modo geral, interessantes? Sejam elas o fulano famoso ou o colega que se senta ao nosso lado num curso qualquer?


Então, porque é tão assustador (para alguns) que biografias sejam escritas e que suas vidas sejam devassadas? Eles não queriam tanto estar ali no alto, no cume, no lugar de destaque que os tornariam visíveis para  todos os outros? Pois como explicar aos outros, aos fãs ou não, que pra chegar ao cume foi preciso fazer isso e aquilo? Coisas nem sempre belas e heroicas? Coisas às vezes bem distantes da imagem rósea que o fulano teima em passar?

Mas e o direito à privacidade? Quem pode ou poderia obrigar o fulano a mostrar todas as páginas do livro da sua vida?

Quem?!

Demasiadamente humanos


Pois, de minha parte, eu não me assustaria ao saber que o senhor fulano tem essa ou aquela orientação sexual ou que ele foi um péssimo marido para a senhorita X ou que ele nem viu os filhos crescerem tão ocupado estava envolvido com drogas ou bebidas lá nos anos setenta ou oitenta...




Porque, afinal de contas, todos esses ‘pecados’ são aceitáveis quando a gente se lembra que somos todos, imperfeitos,  não importa se a mídia tenta revestir os famosos fulanos com aquelas auras de quase santidade ou perfeição... 

Ou se ao contrário (porque a coisa é absurda e isso piora quando nos aproximamos dela, da tal ‘fama’) se a imprensa sensacionalista quer dar um tom melodramático a algo que nem teve toda essa importância na vida do fulano (um divórcio, uma morte, uma falência).


O que acontece é que quando alguém é uma figura pública, sua vida – com toda a beleza ou a feiura normais quando se trata de condição humana, certo? – também é ‘pública’...

Ou não deveria ser assim?

É aqui que entra algo que faz toda a diferença: a maneira como o fulano se posiciona diante da fama. Alguns como o fulano que proibiu o livro, adquiriram aquela aura quase mítica que supostamente o coloca acima do bem e do mal, mas lembremos: ele ainda é humano (quer dizer, acho eu rs) e poderia se quisesse, não ter concedido a entrevista ao rapaz e poderia se quisesse ter optado por ficar distante de tudo isso.


Nessa história toda, somente uma coisa é certa: biógrafos têm razão quando alegam que as futuras gerações correm o risco de não saberem nada sobre os fulanos e fulanas que hoje (por exemplo) estão aí ajudando a construir com suas histórias pessoais  o presente (e o futuro que é feito dele) desse país. 

E estão certos também os biografados que alegam ter o direito à privacidade e a contar apenas ‘detalhes tão pequenos’ de suas grandiosas vidas.

Quem poderá negar a eles esse sacro direito?



Não queria estar na pele de um biografado e nem na de um biógrafo, disso eu sei; mas sei de uma coisa: eu nunca – mas nunca mesmo! – gastaria meu suado dinheirinho comprando livros nos quais se vê a frase ‘biografia autorizada’; isso jamais!




CRÔNICA**CRÔNICA**CRÔNICA



Tenho me aventurado a escrever crônicas e vou postar aqui - na medida do possível - algumas delas. A primeira que escrevi é esta aqui,que foi publicada originalmente no site Crônica do Dia. 

Convido vocês a lerem e a darem uma passada lá no site, onde há cronistas de todo país exercitando esse estilo.




A mesma árvore




Todos nós estivemos no mesmo lugar, à mesma hora, no mesmo dia e sequer havíamos marcado encontro. Foi simples e  natural nossa ida àquele lugar sem que houvéssemos combinado.  No domingo das lojas fechadas, algumas poucas abertas; a praça estava cheia de idosos que dançavam músicas antigas dos tempos grandiosos; de crianças levadas pelas mãos de seus pais atentos ou displicentes; e havia ainda o córrego quase transbordante das chuvas da noite anterior e suas águas barrentas e opacas e mais as nuvens carregadas da outra chuva que haveria de cair dali a pouco (como de fato caiu). Era final de verão.


E, no meio de tudo, nós que sequer havíamos marcado encontro, como já dito, nós todos – a família, esse núcleo de criaturas humanas que se assemelham somente porque dividem a mesma origem  biológica – nos espalhamos pelas alamedas da praça, nos juntamos quando a chuva se fez mais forte sob o mesmo teto e eu me lembro das lojas cheias de turistas apressados e ávidos por comprar e comprar - e nós todos, como todos os outros que ali estavam, carregamos nossa solidão conscienciosos como se moradores de um convento secular e pouco nos atrevemos a ir ao encontro de um ou outro de um jeito que ultrapassasse a superficialidade daquele passeio singelo do domingo de manhã.






Foi assim que nós todos juntamos nossas ausências ali, no meio da praça do domingo sob o sol ameno que depois se tornaria chuva incessante e, apesar disso ou justamente por isso, é que soubemos intimamente (e isso é algo secretíssimo, algo que só se conta em invencionices como essa ) que sim, somos de fato e verdadeiramente uma família.

Pois uma família é exatamente isto: carregar nossas solidões sob as intempéries do tempo que recobre o mundo – seja ele qual for - e nos sentirmos acolhidos quando somos fracos, quando estamos sob pingos grossos de chuva sem uma sombrinha velha sequer que nos cubra ou quando ficamos adoentados e, ainda, quando estamos com fome ou quando descobrimos com algum ranço de revolta ou resignação que não há nem nunca haverá remédio para o fato de que nada que se faça nessa vida vai mudar o rumo do que quer que seja – destino? Padrões genéticos? Filosofias rasas ou complexas? Deus...?  – e que, nesse caso, é o fato de estarmos presos de forma definitiva a todos os outros frutos e sementes  dessa mesma árvore: a família.


 Essa árvore de tronco grosso como um jacarandá, um carvalho ou uma paineira; árvore grandalhona e de galhos compridos espalhados – alguns até se encontram  no topo ou nas laterais como que se buscando afoitos em meio à arquitetura algo caótica e deslumbrante das folhas – que florescem nas estações certas (apesar dos pesares), espalham suas sementes pelos chãos e pelos ares; estas árvores quase petrificadas de tão remotas, estes verdadeiros monumentos orgânicos que deixam entrever algo de Deus em suas folhas lustrosas, suas grossas e duras cascas e suas (quase sempre) raras e tão esperadas flores.

Quando vemos uma árvore dessas, assim antiquíssima, mas ainda resplandecendo seiva e frescor, e a vemos envolta por pássaros numerosos e tão diversos como bem-te-vis, anus, pardais ou sanhaços, e percebemos, quase comovidos, como elas oferecem à paisagem dantesca desse mundo o frescor  luminoso de suas sombras bordadas na terra como se pinturas caprichosas e tão delicadas...

...pois quando estive diante de uma árvore dessas num domingo de manhã, entre os meus, foi que pensei que uma família também é (ou deveria ser) como uma dessas grandes (grandes) árvores: um lugar onde o afeto pudesse sempre ser compartilhado de forma serena e nunca (nunca) fosse usado como moeda de troca ou como as migalhas que às vezes somos obrigados a buscar em terras distantes – como passarinhos desorientados -  porque a ‘nossa’ árvore se esqueceu de produzir alimento suficiente para todos.

E, então, se assim fosse, nós todos seríamos como essas aves tão diversas de origens e cantos que voam pra longe – para o sul ou para o leste – que atravessam os céus de sob oceanos e caatingas, mas sempre retornam  para os galhos dessas grandes e acolhedoras árvores.

Uma família deveria ser como as grandes árvores, isso eu pude apreender naquela manhã.