Ana Vargas
Ih, lá vou eu falar mal do face de novo e devo admitir minha
hipocrisia, pois estou ‘lá’ embora viva querendo sair e
esteja lá mais como observadora do que como ‘entidade’ atuante.
Mas é que essa semana
eu fiquei pensando na bizarrice que é isso: alguém perde a mãe, o pai, alguém
que ama, enfim, e coloca em sua linha do tempo ou na imagem pessoal o
indicativo LUTO!
Há alguns ‘lutos’ prontos pra usar no Google, basta ir lá, pegar a imagem
e pronto. Há também mensagens prontas de sentimentos, de frases que se
costuma usar nessas horas e etc. (Eis o grande
mercado virtual dos sentimentos pré-fabricados!).
Então, acontece que alguém que conheço perdeu alguém e
botou lá a imagem de luto... Pois, no mesmo momento, a imagem teve várias
curtições (?!).
Isso não parece esquisito? Curtir o luto não seria, por conseguinte, curtir a
morte de alguém?
Que loucura é essa (?) fiquei pensando...
Fora de contexto
E me lembrei: quando eu era adolescente a palavra curtir
significava simplesmente gostar muito de algo ou gostar demais da conta,
gostar, enfim, um quase ‘amar’ o que
quer que fosse.
Pois é, vejam como tudo hoje parece fora de propósito, sem
nexo ou deslocado: quando o face foi transplantado para cá e para o resto do
mundo, quem será que se encarregou de traduzir
o palavreado original para a
versão brasileira?
A palavra curtir ficou muito esquisita ali, mas na atual
conjuntura, isso é só um detalhe e dos mais insignificantes, certo?
O mesmo (é claro) deve ter ocorrido em todos os países nos
quais os gênios (?) criadores da tal rede fizeram suas versões locais: as
variações linguísticas foram solenemente ignoradas e aquela palavra mais usual, uma
gíria específica mais comum deve ter sido deslocada para caber ali, no ‘mundo
face’ e para tentar fazer com que a
ideia se propagasse e, como sabemos, os objetivos foram plenamente atingidos
(pelo menos no Brasil e apesar das justas críticas).
Bom, mas nem passa pela minha cabeça (minto, passa sim, mas
dessa vez vou ignorar!) desfiar esse novelo de ‘quem, como, por quê...” em relação à criação do malfadado ‘facebook’
(que acho, está com os dias contados) e suas origens canhestras.
Ao ver a imagem de luto do colega, sendo curtido pensei: ‘mas
não tem nada a ver isso, uma palavra como essa não deveria estar aqui nesse
contexto’.
Eu e minha falta de sensibilidade para com as nuances
linguísticas da grande criação do século! A pessoa perdeu a mãe e coloca lá ‘luto’
e a amiga vem na melhor das intenções, não sabe o que escrever e então,
‘curte’.
Não é louco isso?!
‘Curti pacas’, a morte do fulano...
Aliás, eu fico pensando ‘como alguém que perde alguém tem
ânimo pra ir ao face postar isso, hein? Quem sou eu para julgar quem quer que
seja nesse mundo, mas não se trata de julgamento, vejam bem, sou irmanada com
todas as esquisitices da minha raça, mas essa eu ainda estou digerindo...
Mas voltando ao que me levou a esse post bobinho (ia falar
da fusão da OI com a Portugal Telecom, mas, sinceramente, diante disso,
declarei luto!) o que me desnorteia é pensar que a versão abrasileirada do face
deveria ter sido criada, digamos, com mais cuidado, com mais apuro.
Sim, eu sei que talvez não valesse a pena (mas a quantidade
de usuários diz o contrário, não é?), sei o quanto o face é menosprezado por
tanta gente de bem e de valor, pessoas que admiro por se manterem,
coerentemente, longe daquele burburinho e etc.
Mas no caso da tal curtição do luto que, por conseguinte, é
a curtição da dor e por conseguinte, da morte (se formos aprofundando a
bizarrice só aumenta) de alguém, tudo parece se dissolver (no final) em algo que é simplesmente, uma falta de
sentido generalizada.
Parecemos boiar no mar da falta de sentido (boiar, porque o aprofundamento
dá um trabalho danado! Melhor ficar boiando...) e no meio disso até a morte, até a experiência
marcante de perder alguém que se ama, quando vai parar ali naquele ambiente
raso, até ela (a indesejável, a última fronteira, a temida e por ai afora) se
torna simplesmente, um post pra ser curtido.
Tem gente que ao ver posts assim, se enche de comoção e
desfia palavras de força e apoio (aquilo que deveria ser falado em velórios,
pessoalmente, com toda a sinceridade possível) mas mesmo tais palavras ali,
parecem deslocadas.
Porque ali tudo parece ganhar um peso menor ao mesmo tempo
que parece ampliar ainda mais a falta de sentido de tudo (da morte, da
vida...)? Será que é porque as relações humanas estão tão fragmentadas e
superficiais que tudo bem, ‘curtir’ a dor ou
a alegria, a tristeza ou a notícia ruim sobre a violência para com os
professores lá no Rio?
Santidade virtual
Outro fenômeno relacionado com a morte que tem sido ampliado
fortemente com as redes sociais é esse: todos os amigos da fulana ou do fulano sabem,
por exemplo, que o falecido não foi um bom pai nem bom marido e etc., mas ali,
ele se torna exemplar, maravilhoso, ser humano honrado, nas homenagens feitas pelos familiares.
A gente sabe que quem morre costuma virar ‘santo’, é o que
diziam nossos avós, mas veja: quando você faz uma propaganda assim no tal face
e você (inconscientemente) planta essa mentirinha inofensiva, até certo
ponto, você sabe que os outros sabem que
você mente...
Mas tudo bem, no mesmo instante, muitos haverão de curtir e
até de acrescentar algo àquela mentirinha... E assim todos driblam
(virtualmente) a morte e ficam ‘felizes’ e mais: mostram essa felicidade pra
todos! Não é ótimo, isso?
Pra terminar: tudo isso não é uma grande e tremenda loucura?
Daquelas estratosfericamente grandes?
Com todos os penduricalhos pós-modernos que lhe cabem? Com todas as limitadas
catalogações psiquiátricas que lhe são adequadas?
Só me resta, diante disso, ressuscitar esse poema – é o meu
preferido entre todos os desse poeta genial, porque sempre pensei isso da raça
a qual pertenço e claro, de mim mesma:
Poema em linha reta
Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)
[538]
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de
fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
É claro que no face não caberiam jamais as sutilezas de um
Fernando Pessoa, é claro...
A não ser em posts de citações feitas para fortalecer o
ânimo, algo parecido com pílulas virtuais de auto-ajuda, algo para ser lido
rapidamente e sem nenhum sentimento refinado.
E isso talvez seja algo bom...
Sim: talvez isso seja bom, prova de que a tal rede social
está com os dias contados. Porque uma coisa seria usá-la pra falar de
amenidades, encontrar amigos e divulgar questões importantes – esse seria o uso
adequado num mundo utopicamente bom – outra, no entanto, é esta que temos num
mundo realisticamente imperfeito: para lá foram transferida todas as grandes e
pequenas mesquinharias da alma humana.
Mas, tudo bem que seja assim, é isso afinal, que cabe nesse tempo pra lá de
bizarro que estamos vivendo...
Mas, apesar e, contudo: eu que sou humanamente imperfeita
até a raiz dos cabelos, ‘eu que tenho sofrido a
angústia das pequenas coisas ridículas’, eu, decididamente, não curto nada a
ideia de que a morte seja algo que deva ser curtido numa rede social como um
evento público ou coisa parecida.
Arre! Onde há gente nesse mundo (no real e no virtual)?
2 comentários:
Poxa, todos os comentários possíveis já foram feitos pelo poema do Álvaro de Campos... rs
O 'curtir' do Facebook é realmente mal empregado, e até por isso respeito mais o twitter, afinal ele criou uma nova palavra e fugiu deste problema.
Acho que curtir o luto no Face simboliza bem como as relações hoje em dia são rasas... não tenho conta no Face (só do blog, e nem ajuda mto a divulgar rs) e já ouvi muitos comentários do tipo "tá sumida". Não, não tô sumida, tenho e-mail, telefone e vc sabe onde moro!!! Sumir das redes é um dos meus orgulhos nessa 'Eta vida besta'!!
Pior na versão francesa que é: EU AMO.
EU AMO A MORTE DO FULANO
Postar um comentário