Ana Claudia Vargas
“(...) Como adverte a sabedoria antiga: inter arma silent leges (quando as armas falam, as leis silenciam) “
Zygmunt Bauman
Me esforço para não ser alarmista e para ter uma visão
equilibrada da coisa, me esforço para pensar como as pessoas de bem que
conheço, que não ficam o tempo todo vendo essas notícias ruins. “Isso faz mal
para a gente”, elas dizem, e com toda razão.
Mas então eu não posso olhar para o jornal aqui do lado no
qual um menino de cinco anos faz aquela pose tão típica das crianças que não
estão muito acostumadas a serem fotografadas.
Na verdade, aquele menino ali, de cinco anos já não existia mais: ele foi assassinado na semana passada, aos 13 anos, lá na Brasilândia, mais um dos tantos bairros violentos daqui de São Paulo.
Na verdade, aquele menino ali, de cinco anos já não existia mais: ele foi assassinado na semana passada, aos 13 anos, lá na Brasilândia, mais um dos tantos bairros violentos daqui de São Paulo.
Ele é só mais um dos muitos que já foram assassinados nessa
verdadeira onda de terror que tomou conta da cidade (e lá vou eu, me
alarmando...), um menino negro e pobre que estava passando na frente de um bar bem
na hora de mais um tiroteio e o final
foi esse.
A mãe dele disse em
entrevista para a repórter Carolina Leal, da Folha de São Paulo: “Uns coitados
como o William, que não têm nome, não têm dinheiro, nunca ninguém vai descobrir
quem matou”.
E quem vai questioná-la?
*****
186...
...até agora.
A contagem da semana passada dizia que o número de mortos
estava em 186; mas nesse final de semana
morreram mais 31 (!!!) pessoas.
Está difícil acompanhar a evolução desse placar sinistro.
Está difícil acompanhar a evolução desse placar sinistro.
E, enquanto isso, governador e secretário de segurança
pública se reúnem e discutem e dizem que vão fazer isso e aquilo. Isso lá
longe, atrás dos muros altos e bem protegidos do Palácio dos Bandeirantes,
rodeados pela imprensa ávida de notícias bombásticas para alimentar a engrenagem incessante das informações que não pode parar (e não pode mesmo, isso não é uma crítica)
pois para o bem ou para o mal a imprensa precisa estar atenta.
Mas eu queria é que aqueles senhores engravatados viessem
andar nas ruas, subissem os morros,
conversassem com as pessoas e perguntassem para elas se esse modelo de
segurança pública - que há muito e muito
tempo já deu sinais de exaustão – anda surtindo algum efeito.
Digo, esse modelo violento e corrupto.
Digo, esse modelo violento e corrupto.
E queria que eles se dispusessem a repensar esse ‘modelo’; a
incluir em suas demandas burocráticas e cheias de palavreados difíceis (nem
eles entendem, tenho certeza, basta ver as caras que fazem quando são entrevistados) um pouquinho de boa vontade, um olhar mais
humanizado para o povo dessa cidade que mora nas periferias distantes como a
Brasilândia; esses lugares que são verdadeiras panelas de pressão prestes a
explodirem (ou antes, em franca explosão) porque tem sido insistentemente ignorados desde que essa cidade
existe.
Esses lugares nos quais moram tantos Willians; meninos que vão crescendo excluídos em lugares feios e
degradados.
Mas o que isso tem a ver com a
tal ‘onda de violência’ ?
********
Muitos especialistas disso e daquilo têm sido chamados para
falar sobre a dita
onda de violência, que não é a primeira e,
infelizmente, não será a última.
Hoje mesmo o programa Roda Viva da TV Cultura, abordará o tema.
(Para saber http://tvcultura.cmais.com.br/rodaviva)
Hoje mesmo o programa Roda Viva da TV Cultura, abordará o tema.
(Para saber http://tvcultura.cmais.com.br/rodaviva)
Pois bem: a gente ‘sabe’ por ser humano e por ser parte de
tudo isso que a civilização pós-moderna (para usar um termo polêmico) criou e
cria e etc., que tudo isso aí é apenas a ponta do iceberg.
No fundo a gente sabe que as coisas precisam e deveriam
mudar: São Paulo já não tem mais lugar para tanta gente, mas todos que estão
aqui, deveriam poder viver com um mínimo
de dignidade.
Antes, preciso dizer que não estou defendendo a tese de que viver
amontoado ou ter uma vida restrita financeiramente é desculpa para virar bandido.
Quanta gente há que vive nos piores lugares – sem condições
minimamente dignas – e não se torna bandido?
Mas acontece que o ser humano é um bicho deveras complicado
e a estrutura do iceberg do qual só estamos vendo agora uma pontinha é formada,
sobretudo pelo descaso com que os moradores das tantas brasilândias do Brasil
(e o nome do bairro não é bastante representativo?) têm sido tratados desde
sempre.
É gente demais e gente jovem demais que vive espremida e que
tem os mesmos desejos e aspirações de todos os jovens bem ou mal nascidos do
planeta.
É gente jovem demais que tem sido devidamente amealhada pelo crime organizado.
É gente jovem demais que tem sido devidamente amealhada pelo crime organizado.
Gente vulnerável, cansada de ser tratada como criatura de segunda
mão e de receber sempre, migalhas. E do ‘outro
lado’, numa das linhas de frente desse
‘tratamento’ há aqueles que o (des)governo utiliza como massa de manobra
para fingir que está agindo de modo eficiente no combate ao crime e a tudo mais
que ele representa: os policiais militares. Esses que têm sido covardemente
assassinados, esses que são quase sempre, originários das classes dos Williams
da vida; esses que ganham salários de fome para arriscar suas vidas no ‘combate
ao crime’. Eu também tenho pena deles.
Só sei que é muito (mas muito) revoltante saber que crianças
morrem porque os ditos adultos investidos do poder para fazer alguma coisa, estão
preocupados demais com os trâmites burocráticos – estaduais, federais,
municipais – e tem posturas arrogantes e calcadas (sempre) na ideia de que é
com violência que se combate a violência.
A cidade de São Paulo ou a grande São Paulo, para ser mais
exata, já vem sendo assassinada diariamente desde sempre e continuará a ser até
que aprenda a olhar para as periferias de um modo mais humanizado e menos truculento.
Pareço utópica? Pois eu serei, com louvor, enquanto souber
que há crianças como o William sendo baleadas numa guerra que não é delas.
OS DOIS BRASIS: O DA ALIENAÇÃO E O DA VIOLÊNCIA
Paulo
R. Santos*
Assim como toda cidade não é única, mas duas: a diurna com
sua rotina e pessoas características, e a noturna, com sua outra – e muitas
vezes perigosa – rotina das sombras e dos medos, o Brasil nunca foi único nem
uniforme. E nem poderia ser!
Gilberto Freire, sociólogo da primeira metade do século XX,
identificou dois Brasis, herdados do período colonial, aos quais chamou de
Casa-Grande e Senzala, nome do livro que publicou em 1933, e que inaugura uma
nova fase de interpretação da história brasileira, sem usar as lentes
europeias.
Gilberto Freyre (fonte Wikipédia) |
Esse duplo Brasil ainda existe e persiste com força maior,
apesar dos esforços em amenizar o sofrimento na Senzala. A elite dominante olha
da porta ou da janela do casarão, relativamente seguro, luxuoso e pequeno, o
enorme espaço por onde circula uma população diversificada nas crenças e nas
cores, sobrevivendo como pode, vez por outra - ou quase sempre -, acuada pelas
dificuldades e reprimida pela polícia, infeliz herdeira cultural do Capitão do
mato e dos jagunços.
A alienação da elite, que é um tipo de violência, alimenta
as dificuldades dos herdeiros das senzalas, que vivem em meio a outras formas
de violência, tornando-se – muitas vezes – violentos por força das
circunstâncias extremas. Uma elite prisioneira do egoísmo e da alienação. Uma
população prisioneira da escassa educação e dos desejos não atendidos.
O resultado está bem visível nos números que nos atormentam
e amedrontam. Cerca de 45 mil homicídios por ano. Bolsões de violências várias,
onde parece não existirem inocentes. O principal agressor, o Estado, alimenta a
violência que se estende e amplia para novas áreas, no mínimo por não cumprir
com seus deveres constitucionais.
Exemplos claros são o Rio de Janeiro com um estado paralelo
infiltrado no estado formal, e São Paulo, com um crime organizado capaz de
estabelecer regras de convívio entre o legal e o ilegal. A violência de um lado
produz a reação igualmente violenta do outro. E não nos iludamos pensando que a
situação não se repete em outros estados menos midiáticos ou no coração do
governo federal: Brasília. O Brasil sempre foi um país injusto!
A reversão desse quadro melancólico exige coragem e vontade
política dos governantes que cuidam (ou não) do erário, dos tributos, e da
destinação dos recursos públicos. É preciso investir pesadamente em educação,
saúde, cultura, segurança pública, lazer, transporte, trabalho e emprego,
dentre outras coisas.
Não como um negócio, mas como o preço pela sobrevivência de uma sociedade que vive no medo e na incerteza, alimentos ricos em violência.
Não como um negócio, mas como o preço pela sobrevivência de uma sociedade que vive no medo e na incerteza, alimentos ricos em violência.
* Paulo Roberto Santos é professor e sociólogo, edita o blog http://animalsapiens.blogs.sapo.pt/ e é colaborador oficial deste blog.
Nenhum comentário:
Postar um comentário