segunda-feira, 12 de novembro de 2012

CRÔNICA DE UMA CIDADE ASSASSINADA





Ana Claudia Vargas


“(...) Como adverte a sabedoria antiga: inter arma silent leges (quando as armas falam, as leis silenciam) “ Zygmunt Bauman



Me esforço para não ser alarmista e para ter uma visão equilibrada da coisa, me esforço para pensar como as pessoas de bem que conheço, que não ficam o tempo todo vendo essas notícias ruins. “Isso faz mal para a gente”, elas dizem, e com toda razão.

Mas então eu não posso olhar para o jornal aqui do lado no qual um menino de cinco anos faz aquela pose tão típica das crianças que não estão muito acostumadas a serem fotografadas.

Na verdade, aquele menino ali, de cinco anos já não existia mais: ele foi assassinado na semana passada, aos 13 anos, lá na Brasilândia, mais um dos tantos bairros violentos daqui de São Paulo.

Ele é só mais um dos muitos que já foram assassinados nessa verdadeira onda de terror que tomou conta da cidade (e lá vou eu, me alarmando...), um menino negro e pobre que estava passando na frente de um bar bem na hora de mais um  tiroteio e o final foi esse.

 A mãe dele disse em entrevista para a repórter Carolina Leal, da Folha de São Paulo: “Uns coitados como o William, que não têm nome, não têm dinheiro, nunca ninguém vai descobrir quem matou”.

E quem vai questioná-la?

*****


186...
...até agora.

A contagem da semana passada dizia que o número de mortos estava em 186; mas  nesse final de semana morreram mais 31 (!!!) pessoas. 
Está difícil acompanhar a evolução desse placar sinistro.

E, enquanto isso, governador e secretário de segurança pública se reúnem e discutem e dizem que vão fazer isso e aquilo. Isso lá longe, atrás dos muros altos e bem protegidos do Palácio dos Bandeirantes, rodeados pela imprensa ávida de notícias bombásticas para alimentar a engrenagem incessante das informações que não pode parar (e não pode mesmo, isso não é uma crítica) pois para o bem ou para o mal a imprensa precisa estar atenta.

Mas eu queria é que aqueles senhores engravatados viessem andar nas ruas,  subissem os morros, conversassem com as pessoas e perguntassem para elas se esse modelo de segurança pública  - que há muito e muito tempo já deu sinais de exaustão – anda surtindo algum efeito.

Digo, esse modelo violento e corrupto.

E queria que eles se dispusessem a repensar esse ‘modelo’; a incluir em suas demandas burocráticas e cheias de palavreados difíceis (nem eles entendem, tenho certeza, basta ver as caras que fazem quando são entrevistados) um pouquinho de boa vontade, um olhar mais humanizado para o povo dessa cidade que mora nas periferias distantes como a Brasilândia; esses lugares que são verdadeiras panelas de pressão prestes a explodirem (ou antes, em franca explosão) porque tem sido insistentemente ignorados desde que essa cidade existe.

Esses lugares nos quais moram tantos Willians; meninos que vão crescendo excluídos em lugares feios e degradados.

Mas o que isso tem a ver com a tal ‘onda de violência’ ?

********

Muitos especialistas disso e daquilo têm sido chamados para falar sobre a dita 
onda de violência, que não é a primeira e, infelizmente, não será a última.

Hoje mesmo o programa Roda Viva da TV Cultura, abordará o tema.
(Para saber http://tvcultura.cmais.com.br/rodaviva)

Pois bem: a gente ‘sabe’ por ser humano e por ser parte de tudo isso que a civilização pós-moderna (para usar um termo polêmico) criou e cria e etc., que tudo isso aí é apenas a ponta do iceberg.

No fundo a gente sabe que as coisas precisam e deveriam mudar: São Paulo já não tem mais lugar para tanta gente, mas todos que estão aqui, deveriam poder  viver com um mínimo de dignidade. 

Antes, preciso dizer que não estou defendendo a tese de que viver amontoado ou ter uma vida restrita financeiramente é desculpa para  virar bandido.
Quanta gente há que vive nos piores lugares – sem condições minimamente dignas – e não se torna bandido?

Mas acontece que o ser humano é um bicho deveras complicado e a estrutura do iceberg do qual só estamos vendo agora uma pontinha é formada, sobretudo pelo descaso com que os moradores das tantas brasilândias do Brasil (e o nome do bairro não é bastante representativo?) têm sido tratados desde sempre.

É gente demais e gente jovem demais que vive espremida e que tem os mesmos desejos e aspirações de todos os jovens bem ou mal nascidos do planeta.
É gente jovem demais que tem sido devidamente amealhada pelo crime organizado. 

Gente vulnerável, cansada de ser tratada como criatura de segunda mão e de receber sempre, migalhas.  E do ‘outro lado’, numa das linhas de frente desse  ‘tratamento’ há aqueles que o (des)governo utiliza como massa de manobra para fingir que está agindo de modo eficiente no combate ao crime e a tudo mais que ele representa: os policiais militares. Esses que têm sido covardemente assassinados, esses que são quase sempre, originários das classes dos Williams da vida; esses que ganham salários de fome para arriscar suas vidas no ‘combate ao crime’. Eu também tenho pena deles.

Só sei que é muito (mas muito) revoltante saber que crianças morrem porque os ditos adultos investidos do poder para fazer alguma coisa, estão preocupados demais com os trâmites burocráticos – estaduais, federais, municipais – e tem posturas arrogantes e calcadas (sempre) na ideia de que é com violência que se combate a violência.

A cidade de São Paulo ou a grande São Paulo, para ser mais exata, já vem sendo assassinada diariamente desde sempre e continuará a ser até que aprenda a olhar para as periferias de um modo mais humanizado e menos truculento.

Pareço utópica? Pois eu serei, com louvor, enquanto souber que há crianças como o William sendo baleadas numa guerra que não é delas. 




OS DOIS BRASIS: O DA ALIENAÇÃO E O DA VIOLÊNCIA


                                                       Paulo R. Santos*

Assim como toda cidade não é única, mas duas: a diurna com sua rotina e pessoas características, e a noturna, com sua outra – e muitas vezes perigosa – rotina das sombras e dos medos, o Brasil nunca foi único nem uniforme. E nem poderia ser!

Gilberto Freire, sociólogo da primeira metade do século XX, identificou dois Brasis, herdados do período colonial, aos quais chamou de Casa-Grande e Senzala, nome do livro que publicou em 1933, e que inaugura uma nova fase de interpretação da história brasileira, sem usar as lentes europeias.


Gilberto Freyre (fonte Wikipédia)

Esse duplo Brasil ainda existe e persiste com força maior, apesar dos esforços em amenizar o sofrimento na Senzala. A elite dominante olha da porta ou da janela do casarão, relativamente seguro, luxuoso e pequeno, o enorme espaço por onde circula uma população diversificada nas crenças e nas cores, sobrevivendo como pode, vez por outra - ou quase sempre -, acuada pelas dificuldades e reprimida pela polícia, infeliz herdeira cultural do Capitão do mato e dos jagunços.

A alienação da elite, que é um tipo de violência, alimenta as dificuldades dos herdeiros das senzalas, que vivem em meio a outras formas de violência, tornando-se – muitas vezes – violentos por força das circunstâncias extremas. Uma elite prisioneira do egoísmo e da alienação. Uma população prisioneira da escassa educação e dos desejos não atendidos.

O resultado está bem visível nos números que nos atormentam e amedrontam. Cerca de 45 mil homicídios por ano. Bolsões de violências várias, onde parece não existirem inocentes. O principal agressor, o Estado, alimenta a violência que se estende e amplia para novas áreas, no mínimo por não cumprir com seus deveres constitucionais.


Estados paralelos


Exemplos claros são o Rio de Janeiro com um estado paralelo infiltrado no estado formal, e São Paulo, com um crime organizado capaz de estabelecer regras de convívio entre o legal e o ilegal. A violência de um lado produz a reação igualmente violenta do outro. E não nos iludamos pensando que a situação não se repete em outros estados menos midiáticos ou no coração do governo federal: Brasília. O Brasil sempre foi um país injusto!


Injustiças existem por aqui desde sempre. (Imagem: Wikipédia Free)


A reversão desse quadro melancólico exige coragem e vontade política dos governantes que cuidam (ou não) do erário, dos tributos, e da destinação dos recursos públicos. É preciso investir pesadamente em educação, saúde, cultura, segurança pública, lazer, transporte, trabalho e emprego, dentre outras coisas.

Não como um negócio, mas como o preço pela sobrevivência de uma sociedade que vive no medo e na incerteza, alimentos ricos em violência.


* Paulo Roberto Santos é professor e sociólogo, edita o blog  http://animalsapiens.blogs.sapo.pt/ e é colaborador oficial deste blog.

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