O mundo não está ameaçado pelas pessoas
más, e sim por aquelas que permitem a maldade.
O presente
Hoje é fácil ver as coisas com alguma clareza: nós
crescemos, estudamos um pouco, migramos para as cidades grandes,
olhamos fotografias antigas e achamos
tudo distante e quase irreal. Hoje somos
todos adultos e espera-se que sejamos lúcidos o suficiente para entender o
porquê das coisas, principalmente, daquelas aparentemente incompreensíveis.
Como a maldade, por exemplo.
E isso virou tema pois, como vocês sabem, com a facilidade
de se obter informações sabemos de tudo instantaneamente. E eu soube ainda com
mais verdade, digamos assim, que a presença nefasta do mal é, agora, realidade
cotidiana lá na cidade em que nasci. Um rincão perdido no quase sertão de
Minas.
Ora, você dirá: “mas até hoje você achava que havia algum
lugar livre das ruindades humanas neste
mundo? Quanta alienação”! Sim, e talvez você esteja certo.
Sempre fui dada a fantasiar ou a achar que as coisas do
mundo (certas coisas) não deveriam, não poderiam ser como são; que havia algo
errado e,se havia, era preciso consertar...
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Uma cidade mineira como tantas outras. |
Ontem
E era assim a vida naquela
cidade perdida do centro-oeste mineiro em que nasci, num tempo empoeirado e singelo até a beira da
ingenuidade.
Ali havia toda a matéria prima que certo tipo de povo preconceituoso, de cidade grande, ainda gosta de ridicularizar:
o sotaque arrastado, a vagareza
em assimilar certos hábitos urbanos, a dificuldade em entender (naquele tempo -
anos 1970) os modismos vindos lá de longe, das cidades maiores ( bastava que
tais cidades tivessem semáforos e shoppings para que fossem consideradas ‘grandes’ ).
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...o Benjamim Guimarães... |
Naqueles idos tempos da minha infância, Dores do Indaiá (essa
a minha cidade) conseguia se manter sob
uma redoma quase, e tudo – a vida rotineira que tínhamos entre a escola,
os piqueniques ou pescarias, as andanças pelos quintais de uns e outros, as
conversas dos adultos e as nossas ali pelos passeios, alpendres e praças; a época das chuvas, dos natais, das festas
juninas e das férias escolares; aquela professora mais doce ou mais brava, aquele colega mais certinho ou mais 'encapetado', as festas religiosas ou do tipo, digamos, pagão – parecia existir longe da influência terrível do
mal.
Quantas vezes, na infância, ouvi histórias assustadoras
sobre assassinatos ou mortes ali em Dores? Nenhuma. E olha que tenho boa
memória (é o que dizem aqui em casa) e costumo me lembrar (e também sonho muito
e aí, preciso escrever) de detalhes como a roupa que fulano usou naquele dia da
festa do Rosário de 1982; do nome da minha colega da quinta série que morava
perto da rodoviária ou das palavras que a professora mais querida pronunciou em
certa tarde de 1981.
...lá no fundo, a Matriz de Nossa Senhora das Dores |
Eu me lembro - para o bem ou para o mal, eu me lembro.
O tempo
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Escola Francisco Campos |
Acontece que o tempo passou e nos envelheceu a todos e eu
custo a acreditar que A., que se sentava na primeira carteira da sétima série
do Benjamim Guimarães e era tão inteligente e belo, é difícil aceitar que ele tem mais
de 40 anos hoje, como eu, e deve ser um
adulto com todas as neuroses
contemporâneas sedimentas na alma...
(Será que seus olhos azuis também
envelheceram?)
Assim como é difícil acreditar que aquela minha cidade,
naquele tempo começando a pavimentar a decadência que se acentuaria nas décadas
seguintes, faria isso com grande louvor.
Pois, Dores do Indaiá é hoje o retrato do declínio que deve
afetar grande parte das cidadezinhas mineiras. Os que ficaram adoram falar dos
tempos idos, de quando a cidade poderia ser isso ou aquilo; os que partiram ou
ficaram se encontram para postar fotos do passado ou do presente nas redes
sociais e assim todos vivem (parece)
para além da realidade local que é triste e preocupante...
E é aqui que o mal finalmente entra nessa história toda.
Igreja de Nossa Senhora do Rosário |
Os fatos
Escrever sobre isso me ocorreu porque lá em Dores, há poucos
dias, um casal foi assassinado de forma violenta e o burburinho nas redes sociais
foi grande. Falou-se até em linchamento público
e pessoas de diferentes idades
defenderam veementemente isso e aquilo. Foi em Dores também que uma
força tarefa da polícia militar apreendeu há uns dois meses, drogas e
traficantes e outras pessoas ligadas a (entre outras coisas) prostituição de menores.
Todas pobres, todas muito jovens e eu diria mesmo, muito ‘ousadas’ para o
padrão interiorano no qual cresci.
Há muito a singeleza é coisa fora de
moda também nos interiores...
É ali em Dores também que a polícia tem realizado, com certa regularidade, o vão exercício de prender e soltar usuários de crack menores de idade. Há pontos de tráfico bem movimentados (dizem que são três ou mais, isso numa cidade de menos de treze mil habitantes), e é bem comum ouvir que o ‘filho da dona fulana’ é viciado em crack . Ampliando o tema ‘degradação’ para a política (essa área fértil nesse quesito), na gestão anterior foram comuns casos de corrupção e desvio de dinheiro público, agora, na atual ocorreu o mesmo (mas o atual prefeito, aparentemente, não sabia e os envolvidos foram exonerados).
Ou seja, o ‘buraco’, como sabemos, é sempre “beeeem” mais
embaixo...
O fundo do buraco
Diante de tanta decadência – moral, econômica, política e
etc. – eu fui me lembrando do quanto sempre tive em doses iguais, amor e ódio
por Dores do Indaiá. De como odiava a tal ‘elite’ (quase sempre falida), os
tais fazendeiros que, no final das contas, estavam apenas
tentando manter as aparências e pagaram muito caro por isso.
Todas as vezes que
vejo filmes nos quais há coronéis ou situações nas quais há a tal ‘luta de
classes’ eu me lembro das tantas
situações de exploração ou humilhação que presenciei na escola, no mercado ou na
igreja entre pessoas dessa suposta elite e as gentes do povo (e eu sei o quanto
isso pode parecer outro sinal de ingenuidade de minha parte e o quanto isso
parece fora de moda nesse tempo de black blocs!).
Mas, quem poderia imaginar que até eles – os coronéis
dorenses, os endeusados fazendeiros – seriam nas décadas seguintes, apenas
isso: provas de que aquele modelo social estava fadado ao fracasso, a
confirmação de que lá na década de 1970, se não houvesse tanta roubalheira, se
existisse alguma preocupação social, ‘se’ e ‘se’, Dores não seria a cidade
decadente em todos os sentidos, na qual se transformou.
Hoje, nesse começo de século XXI, muita gente está
preocupada com todas essas questões: violência, insegurança pública, drogas,
degradação moral – ali, nas Dores do Indaiá. Estamos cansados de ler sobre isso em relação
às grandes cidades, certo? Mas quando tudo isso acontece numa cidadezinha que
tem uma avenida e cinco praças, e na qual os velórios
são anunciados em um carro de som pelas ruas, a dimensão é surreal...
...Dores sempre me pareceu um
lugar como a ‘Macondo’ do García Marquez, tão bizarro me pareceu e parece
tantas vezes...
O futuro: meninos na minha antiga rua. |
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Não parece um sonho, essa visão das Dores? |
A pergunta base é: como uma gente tipicamente mineira e
simplória que gosta de se sentar em praças para conversar ou para ver o velório
do fulano passar ou simplesmente para bisbilhotar a vida alheia, convive com
notícias como: explodiram o caixa do Banco do Brasil nessa madrugada; entraram
na casa do seu A. e roubaram tudo; os filhos da dona M., um deles com
menos de 15 anos, estão usando crack
? Pois, agora é preciso encontrar um jeito de enfrentar essas coisas de cidade
grande: assassinaram esse casal e os caixões tiveram que ser lacrados (todos
esses fatos das linhas acima são verídicos).
Tudo isso é muito para Dores do Indaiá, seria muito para
qualquer cidade com menos de 30.000 pessoas, é algo que não deve ser aceito com
naturalidade em hipótese alguma.
Sempre me senti limitada lá naquela
cidade com nome originado na boa fé católica, semelhante a outras
centenas das Gerais; eu olhava pra’s montanhas além da Igrejinha do Rosário e
ficava pensando que deveria existir algo mais além dali.
Ao mesmo tempo eu sinto saudade de várias coisas que pude viver ali - da infância à adolescência-, e fico triste demais da conta por ver a falta de sensibilidade local para com a gravidade dos tantos problemas que têm desabado sobre Dores do Indaiá (a terra do poeta Emílio Moura*, do escritor Rubens Fiúza**, esse um polêmico que falou verdades amargas sobre a cidade, mas era apaixonado por ela).
A citação do começo
atribuída ao Einstein é perfeita para descrever no que se transformou Dores do
Indaiá: o longo descaso político favoreceu a ocorrência de tudo isso que agora
está florescendo com vigor e a cidade que já foi (jocosamente) chamada
‘princesinha do oeste’, a cidade que se parece
cenário daquelas tramas globais em cidades fictícias do interior do país (só o
centro é bem cuidado) finalmente acordou e o que a realidade exibe está sendo
bem difícil de aceitar, por isso escrevi sobre isso hoje.
E, 'isso' que é algo que
não se conclui, porque o ‘mal’ impera
ali, nas Dores do Indaiá, e eu espero que essa fase seja passageira... Estão
vendo? Acho que bem lá no fundo eu sempre gostei de Dores senão não teria
perdido tempo escrevendo essa enormidade de texto (algo que vai contra todas as regras jornalísticas e virtuais).
Para se inteirar do mal:
Para que o bem prevaleça:
* Misticismo
O céu lindo da vila pobre!
E a igreja pequenina, que se espicha toda na torre,
Com vontade de ver o céu.
E o céu tão alto, e o céu tão alto! (Emílio Moura)
http://pt.wikipedia.org/wiki/Em%C3%ADlio_Moura
E como o assunto das biografias continua rendendo, vale muito a pena ler o lúcido artigo que o amigo Paulo Santos * escreveu; textos como esse fazem falta na dita 'grande imprensa':
ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO
Paulo R. Santos*
Ainda refletindo sobre as biografias autorizadas ou não, temos
que considerar que a perda de perspectiva sobre os espaços público e privado
como antagônicos, embora complementares, tem trazido mais que confusão. Olhar
pelo buraco da fechadura virou moda. Fofocar, expor a própria intimidade,
demonstram que tanto códigos de honra quanto a ética ficaram para trás, ou fora
de moda.
Entendo que biografia só mesmo de quem já partiu para o andar de
cima e mereça ser lembrado por uma razão ou outra. E que o pesquisador seja
sério o suficiente para pensar primeiro, no registro da história pública da
vida do biografado e somente depois, na vida privada (ainda que não haja problemas
em mencioná-la). A questão financeira seria o fator menos importante.
Hoje se produzem biografias de gente que está por aí firme e
forte e, claro, os interesses por trás disso são abertamente promocionais e
financeiros.
Hannah Arendt comenta apropriadamente em uma de suas obras que a
formação judaico-cristã predominante no Ocidente também tem papel importante nesse
estado de coisas.
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Hannah Arendt Imagem: Wikipedia Commons |
Pois, se Deus é o Pai (e o pai de todos), e o pai é – segundo a
tradição grega clássica – o 'despotes', aquele que tem total poder sobre o
espaço privado, ele acaba se tornando despótico ao longo dos séculos, isto é,
extrapola o espaço que lhe cabe: o privado, e invade o público. Isso explica,
por exemplo, o fato de que nossos políticos e poderosos, em geral, agem como se
não houvesse 'res publica',
apesar do discurso, e tudo lhes é permitido, tudo lhes pertence enquanto estão
no poder.
Mudar essa mentalidade não é tarefa fácil, já que passa pela
formação familiar e também pela educação formal. Não há mais preocupação com a
questão nem num âmbito nem no outro. Passou a se considerar normal espiar pelas
frestas e buracos o que for possível da vida alheia, escrevendo sobre ela,
inclusive, mesmo que contra a vontade do biografado.
Aqueles que pedem respeito pelas suas vidas privadas - até
porque ainda estão bem vivos e podem ter biografias parciais apenas -, e não
mais que isso, devidamente conversadas com o pesquisador, são chamados de
adeptos da censura como se a vida que viveram, as experiências boas ou trágicas
que sofreram não lhes pertencesse.
Outro dia vi pela TV um pesquisador dizer que tais pessoas são
por si, públicas, não se pertencem mais … Deduz-se que o deus mercado
apropriou-se de todos nós, pequenos e grandes mortais. Não me convenceu!
* Paulo Santos é sociólogo e escritor; edita o blog Animal Sapiens