“Minas principia de dentro para fora e
do céu para o chão...” (Guimarães Rosa no conto “Minha Gente’, do livro “Sagarana”)
Foi assim: de tanto ler aqui e ali,
bobagens sobre Minas Gerais, de tanto conversar com amigos sobre o que viria a
ser as “Minas Gerais” – para além das chatíssimas propagandas turísticas, dos
comerciais mostrando as mesmas imagens¹ (Ouro Preto, “Beagá”, montanhas,
Inhotim, gente de chapéu de palha ou aquela falsa modernidade de prédios
espelhados que se vê de Uberaba a Divinópolis), para muito além das mais
chatíssimas ainda notas sociais que ainda existem nos jornalões mineiros²
(fulano de sobrenome X que casou com sicrana de sobrenome Y; sicrana que voltou
da Europa e abre um negócio no bairro X;
aquelas tentativas frustradas (felizmente) de fazer com que o jeito ‘mineiro’
se molde ao que Rio e São Paulo esperam (vocês pensam que isso é bobagem mas
não é não!), para além, enfim, do que existe de Minas na velha imprensa que pertence às famílias X e
Y, aquelas que não tem nenhum interesse em mostrar as histórias e estórias de
uma Minas que existe – e resiste – nas ruas empoeiradas, nos sotaques
carregados, no jeito de viver, enfim, dessas pessoas que moram nos lugares mais
distantes (ou não), que ainda exercem profissões que já se extinguiram; alguns,
os mais velhos, aqueles que sequer leem jornais porque na maioria das vezes, não puderam aprender a
ler – quanta gente assim ainda há em Minas – e por aí afora. E, em meio a tudo
isso, outra Minas há muito já deu o ar de sua (des?)graça: é aquela pós-moderna
(um termo inadequado mas necessário), aquela que vivencia os efeitos da tal
globalização e é formada por milhares de jovens que são filhos e netos da ‘geração
das profissões em fase de extinção’ (os marceneiros – como meu pai – os
alfaiates, as costureiras e quitandeiras...); são jovens que, apesar da
(alardeada?) facilidade de se continuar os estudos e melhorar de vida ainda não tem acesso (por razões variadas e
específicas) a uma vida melhor do que a que tiveram seus pais e avós. Muitos deles sonham em ir para os EUA ou para
a Bélgica (agora parece ser o ‘país da vez’) para fazer faxina ou o que quer que seja.³ Eu sempre me
identifiquei muito com a história dos que não terão sua história contada em
lugar nenhum: nunca me reconheci – nem a nenhum dos meus – quando lia (leio) o
que a imprensa mineira publicava (e claro: continua publicando), mas para além
das minhas muitas limitações teóricas para tratar de temas que poderiam
‘explicar’ porque as coisas em Minas são dessa forma (e agora me vem à cabeça a
imagem do Aécio Neves cutucando a presidenta Dilma com aquelas bobagens que ele
sabe dizer tão bem sobre ‘ser mineiro’, como se ele soubesse o que vem a ser
isso...é irônico); nessa seção eu espero poder colocar textos, fotos, notícias da ‘outra’ Minas Gerais, aquela que se parece
mais com a que eu gosto e cresci admirando, aquela que é feita de uma
simplicidade que não exclui a busca por outros modos de pensar (para além dos
academicismos ou das visões superficiais), aquela que é feita por gente de
todas as classes, gente que não faz nenhuma questão de se dizer dessa ou
daquela família, desse ou daquele sobrenome e/ou partido político e por aí
afora.
Para terminar: sua leitura, comentário
e contribuição será muitíssimo bem vinda! Peço que perdoe a confusão do texto
acima, com o tempo eu espero ir afinando as muitas ideias que gostaria de
discutir aqui.
E, sem mais delongas, para inaugurar a seção, convido vocês à
leitura do artigo abaixo, do amigo Paulo Santos, sociólogo, mineiro de Santo
Antônio do Monte e morador da modernosa Divinópolis, a maior cidade ali da
região centro-oeste, lugar de muitas lojas com nomes em inglês e (felizmente)
lugar também de gente boa, como o Paulo (e sua esposa e seus filhos), que gosta
de refletir e escrever sobre o que se propõe aqui.
No mais, boa leitura, minha gente (mas antes, algumas explicações):
1 Nada contra essas
imagens, é só cansaço mesmo de ver sempre as mesmas...falta de criatividade de
quem faz essas propagandas, acho eu...
2 Sinceramente: quando vou para Minas e leio os
jornais, fico pensando porque há tanto esforço – por parte dos editores – em
manter aquela ‘aura’ de que Minas é um lugar especial; quase uma ilha de ‘gente
do bem’, longe da corrupção e dos problemas que afetam Rio e SP (violência,
desemprego...). Todo mundo sorri nas colunas sociais, agora, eu bem que queria
saber qual o motivo para tantos sorrisos. Ah, sim: Minas é especial, mas não
pelos motivos que (penso) eles devem achá-la especial...
3Por que ir para os EUA
trabalhar como faxineiro é diferente de ir para o Rio ou para Brasília pra
fazer o mesmo? (Nada contra faxineiros e pedreiros, por favor!) Ah, sim: dizem
que pagam ‘bem’ mais lá, mas acho que a questão é mais de ‘status’: fazer
faxina para americanos e belgas deve ser
mais ‘cool’...Perdoem a pobreza do meu ‘raciocínio’ é que não aguento topar com
gente que se acha superior por que está nessa situação e como há disso em
Minas...isso é triste.
Um reino africano no Centro de Minas?
( Parte 1)
No início do
século XVIII, surgiu mais ou menos na região centro-oeste da então Capitania de
Minas Gerais, uma confederação de quilombos que, no conjunto, passou a ser
conhecida como Quilombo do Rei Ambrósio, ou do Campo Grande.
Heróis fora da história
Existem muitas lacunas e distorções na historiografia brasileira. Há
excesso de heróis e escassez de povo, de gente simples, daqueles que
participaram efetivamente da construção desse país, nem que seja como vítimas
das atrocidades praticadas pelos eventuais e momentâneos donos do poder.
Só recentemente dois heróis foram acrescentados ao panteão brasileiro,
para representar as três raças que compõem nosso povo. Além do branco
Tiradentes, já temos o indígena da resistência guarani, Sepé Tiaraju, e o negro
quilombola Zumbi de Palmares. Mas ainda falta muito para uma história menos
incompleta.
No início do século XVIII, começou a surgir mais ou menos na região
centro-oeste da então Capitania de Minas Gerais, uma confederação de quilombos
que, no conjunto, passou a ser conhecida como Quilombo do Rei Ambrósio, ou do
Campo Grande.
Seu perímetro exato é desconhecido, mas há indícios que ia do Rio das
Mortes (perto de São João Del Rei), passando por onde hoje é Itaguara (às
margens da BR-381, MG-SP), em direção a Abaeté, seguindo para Ibiá, Campo Belo
e com sede mais duradoura onde hoje fica a cidade de Cristais.
O povoado de Catumba ainda guarda
restos de construções feitas pelos escravos. Seriam vestígios do Quilombo do Rei Ambrósio?
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Quilombo do Rei Ambrósio
Nesse complexo conjunto de aldeias confederadas viviam e conviviam os
quilombolas (negros escravos fugidos), indígenas de várias etnias, brancos
pobres, garimpeiros, comerciantes falidos, perseguidos de todos os tipos,
formando uma população heterogênea e fixa de vários milhares de homens,
mulheres, crianças, idosos. Faziam comércio com os tropeiros, garimpavam e
trocavam o outro e pedras por armas e munições, sal, tecidos, charque e tudo o
mais que precisassem, vivendo de forma autônoma por meio de agricultura de
subsistência, com o eventual excedente sendo também objeto de troca.
Claro que a formação de um reino dessa natureza bem no centro de uma das
principais fontes de riqueza da Corte portuguesa não interessava. Por isso,
sucessivos ataques de tropas reinóis e de mercenários ocorreram, sendo vencidas
pelos quilombolas. O interesse da Corte pelo sertão da Farinha Podre (atual
Triângulo Mineiro) era grande, pelas possibilidades de riquezas, trânsito para
regiões mais interioranas e controle das terras de Goiás. O Triângulo pertencia
a Goiás naqueles tempos, e por isso havia uma motivação também de política
expansionista, além de controle sobre os territórios das minas.
Para se chegar aos propósitos do governador da Capitania das Gerais e da
Corte, era preciso eliminar o quilombo do Rei Ambrósio e anexar à região do
Triângulo. Com isso, as batalhas ocorridas em regiões mais centrais, próximas a
Formiga, Itapecerica (então Vila do Tamanduá), Campo Belo e Cristais, por
exemplo, eram registradas pelo então responsável por essas notas, Coronel
Inácio Correia Pamplona (um dos principais delatores da Conjuração Mineira),
como tendo ocorrido mais além, perto da região do sertão da Farinha Podre.
Mapa no Arquivo Nacional mostra detalhes
do Quilombo do Rei Ambrósio, no interior de Minas.
Abrangência da resistência negra
Os primeiros redutos quilombolas, formados a partir da Guerra dos
Emboabas (1708-09), deram origem a essa grande confederação nos moldes dos
reinos africanos, com um dos líderes, Ambrósio, tendo dado seu nome ao
conjunto. O fim do quilombo se deu por volta de 1760, quando o bandeirante
pitanguiense Bartolomeu Bueno do Prado, partiu com cerca de quatro mil homens
bem armados (pelos padrões da época: armas de fogo e brancas, lanças, arco e
flecha).
Num desses enfrentamentos quatro mil pares de orelhas negras foram
postas em tonéis com salmoura, para serem entregues em Vila Rica, em troca do
respectivo pagamento por cada morto. O quilombo resistiu até seu fim, seguido
da dispersão, morte ou aprisionamento dos sobreviventes.
De qualquer forma, tais eventos não se perdem, mesmo quando são
intencionalmente esquecidos pelos políticos, governantes ou historiadores. São
muitas as lacunas, é verdade, pois os dados e informações são escassos. Boa
parte dos documentos foi levada para São Paulo e para Portugal, ou simplesmente
destruída, pelo que se sabe. Mas a tradição oral permaneceu e as histórias e
estórias seguem seu curso, na visão de cada interpretador.
Restos de antigas construções podem ser
vistos em Catumba.
Traços herdados de tempos trágicos
Muitos consideram o mineiro um tipo arredio e desconfiado, muitas vezes
confundindo esse traço herdado de uma longa história de lutas, como timidez.
É provável que, na linha de raciocínio do psicólogo suíço Jung, esses
séculos de lutas contra as arbitrariedades e mentiras oficiais tenham formado
um arquétipo que o mineiro carrega consigo desde o berço.
Formou-se um tipo negociador e conciliador, que procura evitar o
confronto, pois está disposto a ir até o fim se este acontecer. Resultado dos
muitos reveses acontecidos no passado.
O século XVIII na Capitania das Gerais foi um século especialmente
trágico. Começou com a Guerra dos Emboadas, seguida pela revolta de Felipe dos
Santos, as campanhas militares contra quilombolas e indígenas, exterminando os
goitacás, abaetés, candidés, tamaraícas, caiapós e tantas outras etnias, seja
pela espada ou pela doença trazida pelos brancos.
O século terminou com a delação, prisão, tortura e morte ou exílio para
os envolvidos com a Conjuração Mineira, também chamada Inconfidência Mineira
(1788-89).
Somos desestimulados a conhecer nossa história e nosso passado; nossas
origens. Um povo sem consciência histórica é um povo sem referências ou
conhecimentos do por que somos como somos e onde, como e por que precisamos
mudar em alguma coisa. Sem conhecimento do passado, não nos situamos no
presente e assim, fica difícil planejar ou vislumbrar o futuro.
O reino africano que existiu no Centro-oeste de Minas Gerais no século
XVIII - equivalente ou talvez maior que o de Palmares -, levanta uma série de
questões: porque se tenta apagar a história? Por que se distorcem os
acontecimentos? Por que se omitem informações valiosas para as gerações mais
novas? A quem interessa manter o povo na ignorância de suas próprias origens?
Você pode ler outros textos do Paulo Santos no blog que ele edita, o "Animal Sapiens":
Fonte original do artigo: Via Fanzine http://www.viafanzine.jor.br/principal.htm
Crédito das imagens: Fotos: Charles Aquino/Mapa:Arquivo Nacional/Itaúna em Décadas
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