Ana Vargas
Acontece que o caso recente dessa moça deixou no ar as
mesmas e tão velhas perguntas sem resposta. Eis algumas: como uma pessoa que
tinha uma vida pela frente e era bem sucedida e além do mais, era tão bonita e
etc. pôde fazer uma coisa dessas? E o
caso dessa moça veio, naturalmente, trazendo a tona os mesmos questionamentos
que a gente tem quando se vê diante de coisas assim, aparentemente, sem
explicação.
Falo sobre um tema tabu: o suicídio.
Pois, motivada por mais esse caso fui pesquisar sobre e fiquei sabendo que
Dores do Indaiá, a cidade na qual nasci, ali no oeste das Gerais, ocupa a 20º
posição no ranking nacional desse tipo de ocorrência. *
Mas nem precisava um estudo – embora a confirmação
científica de tais fatos seja importante
– para que eu saiba, como sempre soube, que há uma ‘coisa’ bem triste ali
para os lados do Indaiá.
Naquele lado de Minas
que, para quem não sabe, é segunda região mais pobre do estado (se é que isso
tem alguma importância) perdendo apenas para o norte; suicídios são ocorrências
tão banais que apesar de causarem (sempre) uma onda de comoção, são logo
esquecidos até que o da semana ou do mês seguinte venha causar o mesmo rebuliço
na comunidade.
“O que fazer, o que
poderia ter sido feito? Como isso pôde acontecer?”: são as perguntas que pais e mães e todos, enfim,
se fazem, insistentemente, mas, tais perguntas apenas ecoam e retornam do vácuo, inexplicáveis como tantas
outras desse nosso mundo complicado.
O fato é que cresci em meio às variadas histórias de
suicídios que eram quase semanais, lá pelos idos dos anos 1970, durante minha
infância. Numa cidade pequena notícias como essas literalmente voam, e todo
mundo (e não há, que eu saiba, como escapar disso e isso é inclusive,
contagiante) talvez numa vã tentativa de entendimento, fala sobre o caso até a exaustão absoluta.
Já vi esse filme macabro tantas e tantas vezes: me lembrei
dos filhos de duas vizinhas – um na década de 1970, prestes a se casar; o
outro, na década de 1980, também na mesma situação – do irmão adolescente de
uma amiga, de uma criança (sim) de apenas 13 anos, nos anos 1990; me lembrei
de tantos parentes que fizeram isso (e foram muitos); de uma moça tão
simpática e doce e bonita que se enforcou, isso num tempo em que eu achava que
bastavam essas qualidades para que alguém fosse ‘feliz’, lá pelos meus doze
anos. Houve também o caso de um idoso de 80 e poucos anos, casado há 60, que se
irritou com a pergunta da esposa e o resto, deixo que vocês imaginem. No ano
passado também perdi uma pessoa com qual dividi a infância e adolescência,
dessa mesma forma.
Tudo isso me fez lembrar que antigamente – hoje já parei com
esses passeios – eu gostava de ir ao cemitério.
E, não: não se tratava de ir para ficar lá zanzando como alguns jovens fazem como que para cultivar um lado dark ou coisa parecida. Ir lá, ao contrário, tinha o poder de me animar, de fazer com que eu me sentisse mais preparada para os embates da vida do lado de cá (porque para mim a vida sempre pareceu mais um campo de batalhas do que qualquer outra coisa).
E, não: não se tratava de ir para ficar lá zanzando como alguns jovens fazem como que para cultivar um lado dark ou coisa parecida. Ir lá, ao contrário, tinha o poder de me animar, de fazer com que eu me sentisse mais preparada para os embates da vida do lado de cá (porque para mim a vida sempre pareceu mais um campo de batalhas do que qualquer outra coisa).
Então, nós íamos – eu e alguns amigos mais íntimos – para
visitar o túmulo do avô ou da avó, ou daquele tio de quem se gostava tanto, e
quase sempre a gente se deparava, naturalmente, com os túmulos daqueles que
haviam decidido sair por conta própria dessa brincadeira (?) tormentosa e
também feliz (quando se sabe viver) que é a vida. Tanta gente de 17 ou 18 anos
que havia feito isso. Alguns eram nossos colegas de classe e pareciam, inclusive, bem felizes com a vida que levavam.
Mas, voltando: outra coisa que nos
levava até aquele lado da cidade era mais poética: lá, na ingenuidade dos nossos
tempos adolescentes, a gente gostava de ir ver o sol ir embora porque ali, atrás
do cemitério de Dores, entre um mar de montanhas, a visão era (é) magnífica.
Aqui só sobrou o 'rastro' do sol que se foi...É o céu de inverno aqui no sul de Minas. |
Essa era nossa desculpa para aqueles (tantos) que nunca
entendiam o que íamos fazer na ‘avenida da saudade’: pois então, era para ver o
sol se despedir do mundo, se agarrando à terra com força, como que, sangrando
sobre a cidade.
Era bonito de se ver.
Pois, sei lá porque, foi disso tudo que me lembrei quando
soube de mais esse caso de pessoa jovem e cheia de vida que desiste da... vida.
“Por que”?
Como sempre, a pergunta volta à tona nas mentes mais racionais e encobre algumas questões que afetam sim, as pessoas mais sensíveis ou mais dadas à melancolia ou aquelas que simplesmente, não querem mais ficar por aqui, ainda que o motivo para isso seja quase sempre banal (aos olhos dos outros).
“Por que”?
Como sempre, a pergunta volta à tona nas mentes mais racionais e encobre algumas questões que afetam sim, as pessoas mais sensíveis ou mais dadas à melancolia ou aquelas que simplesmente, não querem mais ficar por aqui, ainda que o motivo para isso seja quase sempre banal (aos olhos dos outros).
De minha parte, eu acho que seria perfeito se cada pessoa guardasse dentro
de si como pedra de toque, a certeza de que, não importa o que ocorra ‘fora’, é
o dentro que vai mantê-la de pé; mas acontece que alguns de nós têm raízes fracas
ou fincadas em solo arenoso e aí qualquer vento é vento bravo.
Tem gente que diz achar que quem se mata é covarde, mas eu
tenho minhas dúvidas. Acho, ao contrário, que é preciso muita coragem para sair
da vida, talvez a mesma requerida para se atirar de um trem em movimento,
talvez seja como se jogar de um edifício ou de uma ponte. Desistir da vida,
desapegar-se dela, por raiva ou frustração, é difícil e requer uma ‘coragem’
que imagino, deve ser feita de grande confusão mental, uma centena de
sentimentos negativos, peçonhentos, ruins.
Nessa história toda - por me lembrar da moça do começo do
texto quando ela era uma graciosa menininha de três ou quatro anos - eu fiquei pensando que a dor de quem fica
deve ser tão insuportável quanto a que ela deve ter sentido a ponto de fazer
tal crueldade consigo mesma.
E de dor em dor; seja a dor de quem parte assim, rompendo
por conta própria o laço que o mantém vivo – o que os espíritas chamam
‘perispírito’ – seja a dor grandiosa de quem fica a contemplar a ausência
feita, penso, de mil dúvidas e sentimentos de culpa e coisas não ditas; penso ainda,
que seria bom, se alguém (?), talvez um estudioso, um especialista ou um
religioso, se dispusesse a explicar porque em alguns lugares como minha cidade
natal, ali no oeste de Minas, tanta gente (jovem, idosa, rica, pobre, negra,
branca, simpática, carrancuda, feia e bonita e etc.) se suicida.
Realmente, esse é um mistério que paira sobre aquela cidade
na qual nasci e parece se renovar (infelizmente) a cada ano que passa.
* O dado é do Mapa da Violência de 2011, publicação do Instituto Sangari .
Um comentário:
É um texto que nos leva a reflexões profundas (tão profundas como as águas mais escuras do oceano). É um tema muito complexo e sobre o qual eu não consigo chegar a nenhuma conclusão. Eu disse outro dia que se um suicida pudesse ver toda a cena alguns minutos após, o sofrimento que causou, eu acho que, se pudesse, ele voltaria atrás... e não sei mais o que dizer. O texto é belo e triste!
Anamaria
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